A organização sem fins lucrativos já beneficiou mais de 8,5 milhões de crianças e adolescentes no país, por meio de ações e projetos nos eixos de saúde, educação e proteção.
Tamanha experiência no assunto legitima posicionamentos a respeito da divulgação de dados oficiais, inclusive para contestá-los. Foi o caso da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) Contínua, divulgada em novembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), segundo a qual o trabalho infantil atingia 1,8 milhão de crianças e adolescentes de cinco a 17 anos no Brasil em 2016, sendo que 998 mil atuavam em situação irregular.
"Estes dados apresentados, incluindo as 30 mil crianças e adolescentes na faixa de cinco a nove anos, mascaram a realidade do trabalho infantil no Brasil. As informações precisam ser avaliadas e compreendidas a partir da seguinte mudança metodológica: foram excluídas da coleta de dados sobre trabalho infantil as crianças e os adolescentes que trabalham nas ocupações "produção para o próprio consumo" e "na construção para próprio uso". Nessas ocupações, há uma maior incidência de trabalho infantil abaixo de 13 anos", argumenta a socióloga Denise Maria Cesario, gerente-executiva da Fundação Abrinq, onde atua há 16 anos.
De acordo com a gestora, "a partir dessa mudança metodológica, crianças e adolescentes que trabalham na produção para o próprio consumo e na construção para o próprio uso ficarão excluídas das ações e dos programas de prevenção e erradicação do trabalho infantil, que não consideram trabalhadores infantis crianças e adolescentes nessas ocupações".
Sediada na Vila Nova Conceição, zona sul da Capital paulista, a entidade sempre atuou pautando-se por três documentos fundamentais para guiar este trabalho: Constituição Federal (1988), Declaração Universal dos Direitos das Crianças da ONU (1989) e Estatuto da Criança e do Adolescente (1990).
De lá para cá, a Fundação Abrinq mantém-se com recursos oriundos de fundações nacionais e internacionais, de empresas e indivíduos, e por meio de parcerias estratégicas firmadas com organizações sociais, empresas, voluntários, escolas, poder público e imprensa. Para dar conta de todo o trabalho realizado, a organização conta com orçamento anual girando em torno de R$ 25 milhões e um quadro funcional com 73 profissionais em regime de CLT e 26 estagiários.
Revista Filantropia: Parte das crianças e dos adolescentes acaba indo trabalhar por necessidade e abandona os estudos. Como este problema poderia ser resolvido, embora já tenhamos, por exemplo, programas sociais como o Bolsa Família?
Denise Maria Cesario: Os programas sociais são parte da resolução deste problema, mas ainda é preciso avançar muito em política públicas destinadas às crianças, adolescentes e suas famílias. É necessário que haja investimento em educação de qualidade, criação de espaços onde as crianças possam usufruir atividades que promovam seu desenvolvimento e, principalmente, o proteja. Programas de geração e transferência de renda, escolarização e acompanhamento para as famílias dessas crianças são ações primordiais. Diagnóstico local e implementação de políticas relativas com maior investimento orçamentário, monitoramento e controle social.
Também, que a Lei da Aprendizagem seja efetivada para que adolescentes e jovens ingressem no mercado de trabalho de forma protegida e segura. É imprescindível que os adolescentes e os jovens tenham oportunidades de estudo e profissionalização para que sua inserção ocorra de forma qualificada alcançando seu crescimento profissional, social e econômico.
Filantropia: Outros problemas ainda comuns no país são a ida de crianças para o tráfico de drogas e a exploração sexual de menores de idade, já que aqui é um dos destinos preferidos para o turismo sexual. Como a Fundação Abrinq tem agido para combater essas situações e como vê a atuação do poder público e dos órgãos de Justiça?
Denise: No enfrentamento à exploração sexual de crianças e adolescentes, a Fundação Abrinq trabalha alertando a população para os indicadores e principalmente divulgando os canais de denúncias por meio de campanhas e mobilizações em parcerias com organizações e institutos, empresas e municípios. Também apoiamos as ações realizadas pelas organizações que compõem a Rede Nossas Crianças, que agrega aproximadamente 250 organizações sociais.
Filantropia: Por que o Brasil não consegue garantir os direitos de crianças e adolescentes, se há legislações como o ECA para isso? Quais direitos são mais desrespeitados? O que estaria faltando para se chegar a uma situação positiva?
Denise: Com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, o Brasil avançou em muitos aspectos, como no combate à mortalidade e ao trabalho infantil, na inclusão das crianças na escola, na criação de conselhos de direitos e tutelares e na redução da mortalidade materna.
Mas há ainda muitos desafios para a plena garantia de direitos de crianças e adolescentes: assegurar escola em tempo integral e de qualidade, combater a violência, erradicar o trabalho infantil, fortalecer o sistema de garantia de direitos, entre outros, que requerem a soma de esforços entre governos nas três esferas administrativas, empresas e sociedade civil.
Filantropia: Que projetos atualmente são mantidos pela Fundação Abrinq e como eles têm se refletido na luta pelos direitos de crianças e adolescentes?
Denise: A Fundação Abrinq desenvolve programas e projetos nos eixos da educação, saúde e proteção; está presente em mais de 2.300 municípios e ao longo de 27 anos de atuação já beneficiou 8,5 milhões de crianças e adolescentes.
Os programas e projetos no eixo de direito à educação estão focados no acesso com qualidade das ações de creche e pré-escola e qualidade na etapa do ensino fundamental. No eixo de direito à saúde estamos focados na sobrevivência infantil com ações de formação e sensibilização de profissionais para o acompanhamento pré-natal, redução da mortalidade infantil e na infância, além da segurança alimentar, ações com foco no aleitamento materno, nutrição infantil e alimentação escolar. E no eixo de direito à proteção são desenvolvidos os programa e projetos, com foco no combate ao trabalho infantil e violência, além do fortalecimento da gestão pública (federal e municipal).
Filantropia: Como funciona o Observatório da Criança e do Adolescente, quando foi criado e que resultados práticos têm obtido?
Denise: Criado em 2015, o Observatório da Criança e do Adolescente é um espaço virtual que possibilita a consulta, em um mesmo lugar, dos principais indicadores sociais relacionados direta e indiretamente à infância e adolescência no Brasil. Seu objetivo é organizar as informações e facilitar o acesso a bases de dados de diversas fontes púbicas e privadas sobre população, qualidade de vida e bem-estar de crianças e adolescentes com idades entre zero e 18 anos, permitindo uma análise da evolução das principais políticas, dos desafios e das desigualdades regionais. Destina-se a formadores de opinião, representantes da sociedade civil, pesquisadores, gestores públicos e quaisquer pessoas que queiram, a partir de um simples mecanismo de busca on-line, conhecer a realidade e os problemas sociais que mais afetam as crianças e os adolescentes no país.
Como parte das ações estratégicas da Fundação Abrinq, o Observatório da Criança e do Adolescente constitui um importante instrumento de estímulo e pressão para implementação de políticas públicas e ações que possam responder aos desafios ainda existentes para a consolidação dos direitos assegurados às nossas crianças e adolescentes.
Alguns resultados obtidos são: disseminação dos indicadores sociais monitorados pela Fundação; disseminação da agenda legislativa prioritária da infância e o monitoramento legislativo que a Fundação realiza; publicação da série A Criança e o Adolescente nos ODS – Marco Zero dos Principais Indicadores Brasileiros; publicação anual do Cenário da Infância e Adolescência no Brasil e publicação anual do Caderno Legislativo da Criança e do Adolescente.
Filantropia: Que dificuldades a entidade encontra ao buscar apoio com prefeitos e outros entes do poder público?
Denise: Não buscamos apoio diretamente dos prefeitos, nem de órgãos da administração pública para que nossas ações sejam realizadas. Sensibilizamos e engajamos por meio do Programa Prefeito Amigo da Criança, e após o ingresso dos prefeitos, monitoramos o cumprimento de uma agenda de trabalho que potencialmente pode impulsionar a melhoria dos indicadores sociais que medem a qualidade de vida de crianças e adolescentes e dos processos de gestão local. Os prefeitos, então, passam a ser os responsáveis por exigir de suas equipes o cumprimento dessa agenda, a fim de que ao final do mandato possam ser reconhecidos como Prefeito Amigo da Criança. Dificuldades mais recorrentes: criar processos de planejamento participativos, intersetoriais e de longo prazo. Os gestores querem resultados rápidos para se beneficiarem politicamente e em geral os problemas que afetam o cotidiano das crianças são complexos e dependem de soluções integradas e de longo prazo.
Filantropia: E quanto às empresas, como elas recebem os projetos e como dão seu apoio?
Denise: As empresas podem ser parceiras da Fundação por meio do financiamento de programas e projetos e também participando do Programa Empresa Amiga da Criança, que engaja o empresariado na defesa dos direitos da criança e do adolescente, mobilizando e reconhecendo empresas que realizam ações sociais, combatem o trabalho infantil e promovem ações de estímulo à aprendizagem e inserção ao primeiro emprego.
Nas ações e campanhas de combate ao trabalho infantil e enfrentamento da exploração sexual contra crianças e adolescentes, as empresas são parceiras na divulgação dos materiais aos seus colaboradores, fornecedores e clientes.
Filantropia: A crise econômica do país refletiu negativamente na arrecadação da entidade?
Denise: Afetou todos os setores da economia, inclusive as organizações sociais que vivem de doações de pessoas físicas ou de empresas. Sentimos este impacto na nossa arrecadação e nas organizações sociais parceiras que realizam atendimento direto às crianças, impacto que alcançou todos os setores do país e trouxe desafios no fazer e na necessidade de otimização de recursos.
Filantropia: A Fundação atua diretamente com o público final, ou seja, crianças e adolescentes? Se sim, quais os números desse atendimento? A entidade costuma receber denúncias? Se sim, como age?
Denise: A Fundação Abrinq não realiza o atendimento direto, mas atua com organizações sociais que realizam este atendimento. Alguns dos nossos programas e projetos têm como objetivo apoiar técnica e financeiramente organizações sociais para que possam fortalecer e qualificar o atendimento oferecido. Além disso, por meio do engajamento de profissionais de saúde para atuação de forma voluntária, ampliamos a possibilidade de promoção de vidas saudáveis. Já beneficiamos, com nossas ações ao longo de 27 anos, mais de 8,5 milhões de crianças e adolescentes.
Não somos um órgão de denúncia, mas as pessoas que nos procuram são orientadas a buscar os órgãos competentes para que sejam apuradas e encaminhadas de forma adequada, como os conselhos tutelares, os disque-denúncias etc.
LINK: http://www.fadc.org.br