Mobilização de Sucesso

Por: Luciano Guimarães
04 Agosto 2017 - 00h00

Aventada por relator da PEC nº 287/2016, possibilidade do fim de isenções e imunidades tributárias para entidades filantrópicas leva organizações sociais a "gritar" contra impactos negativos no atendimento à população

Embora a imunidade tributária conferida às entidades filantrópicas tenha impacto de apenas 3% sobre a receita da Previdência Social, invariavelmente os entes públicos surgem com ideias de "saneamento das contas" para tirar este benefício das organizações sociais, especialmente em épocas de crise econômica, como a atual. O mais recente intento partiu do deputado federal Arthur Oliveira Maia (PPS-BA), relator da a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 287/20161, que trata da reforma previdenciária.

Antes de entregar o relatório, o parlamentar havia se posicionado a favor do fim das desonerações, especialmente aquelas concedidas às entidades educacionais (ensinos básico e superior). No entendimento do deputado, a educação não integraria a seguridade social, rubrica com fontes próprias de financiamento abarcando saúde, assistência social e Previdência.

Os números do segmento educacional, entretanto, dizem o contrário dessa reflexão. Segundo o Fórum Nacional das Instituições Filantrópicas (Fonif), hoje há 2,1 mil unidades de ensino que empregam 204 mil pessoas, abrangendo 2,2 milhões de alunos e 588 mil bolsas de estudo.

O medo foi geral, mas felizmente a mobilização das organizações do Terceiro Setor foi essencial para que o relator não incluísse essa mudança no documento. Um exemplo disso foi a decisiva apresentação de argumentos pró-imunidades do advogado e contador Ricardo Monello, sócio do escritório Sergio Monello Advogados, na comissão especial da Câmara dos Deputados, criada para analisar a PEC nº 287/2016. "Caso percam suas imunidades, serão centenas de escolas e centros sociais que correrão risco, e milhares de pessoas perderão o atendimento digno e humanitário. Isso pode levar a uma calamidade social total", afirmou na ocasião.

"Não obstante a isto, o relator não deixou de incluir mais um parágrafo no texto da PEC, que pode, em dado momento, vir a causar uma dúbia interpretação quanto a limitação ao poder de tributar, pois assim consta do parágrafo acrescentado ao artigo 195: § 11-B- É vedado o tratamento diferenciado e favorecido para contribuintes, mediante a concessão de isenção, redução de alíquota ou diferenciação de base de cálculo das contribuições sociais de que tratam os incisos I, a, e II do caput ou das contribuições que as substituam, salvo o previsto no § 8º deste artigo, na alínea d do inciso III do art. 146 e no § 13 do art. 201", posiciona-se o advogado Marcos Biasioli, da M. Biasioli Advogados e membro do Conselho Consultivo da Revista Filantropia.

Entretanto, o especialista tranquiliza os gestores das organizações, pois, "muito embora tal redação possa desassossegar alguns entes sociais, defendemos aqui que tal proposta de emenda, se mantido o texto apresentado, não afetará sequer de longe o direito das entidades, a uma, que o parágrafo 7º não foi alterado; a duas, que um parágrafo de uma norma não pode suprimir a regulação de outro da mesma norma, seria um paradoxo; a três, que a referida decisão do STF sobre a limitação ao poder de tributar já pacificou o entendimento da garantia da imunidade tributária das beneficentes, ainda que arraigada de algumas restrições emanadas de lei ordinária".

Equívoco

Pesquisa intitulada A contrapartida do setor filantrópico para o Brasil2, realizada pela Dom Strategy Partners e lançada pelo Fonif em 2016, mostra que o pensamento do relator da PEC realmente não coincidia com a realidade.

Segundo o levantamento, o Brasil tem hoje 8.695 organizações detentoras da Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social (Cebas) – o equivalente a cerca de 1.400 da área da saúde, 2.100 da educação e 5.000 da assistência social –, que entre 2012 e 2014, por exemplo, tiveram R$ 26,7 bilhões em isenções da cota patronal do INSS, ou 20,3% do montante de R$ 131,6 bilhões em renúncias contabilizadas por todo o Brasil.

"Em uma conta equivocada, quem é favorável ao corte está ignorando que nas áreas de saúde, educação e assistência social, a cada R$ 1,00 obtido por isenções fiscais, cada instituição filantrópica retorna R$ 5,92 em benefícios para a sociedade", salienta o presidente do Fonif, Custódio Pereira.

Para corroborar todos estes números, dados oficiais de 2014 revelam que a Previdência Social brasileira arrecadou R$ 348 bilhões e isentou R$ 10,5 bilhões do setor filantrópico no pagamento da cota patronal.

"Como contrapartida, o Terceiro Setor aportou valores tangíveis (empregados diretos, indiretos, materiais, estruturas etc.) e intangíveis (qualidade, conhecimento, desenvolvimento etc.) e devolveu à população (de quem 'teoricamente' tirou os R$ 10 bilhões) mais de R$ 60 bilhões, ou seja, mais de seis vezes o que deixou de pagar legalmente", reforça o dirigente do Fórum.

Suprema Corte

Embora o pensamento do deputado federal Arthur Oliveira Maia não contemplasse todas as áreas da filantropia nacional, o Supremo Tribunal Federal (STF) compreende que dentro do conceito de assistência social estão englobadas todas as organizações sociais de saúde e educação. Entre os profissionais do Direito, há uma corrente que concorda com os magistrados e outra que diverge da interpretação da decisão do STF.

"A jurisprudência das cortes superiores e a doutrina entendem, em especial no tocante à educação, que ao conceito deve ser dada interpretação ampla, não sendo consideradas entidades educacionais apenas aquelas que desenvolvem atividades em sala de aula, mas, sim, aquelas que atuam na plenitude da transformação do ser humano. Portanto, entidades que atuam com cultura, meio ambiente, esportes, entre outros, devem ser beneficiadas e ter o mesmo tratamento concedido às entidades de assistência social", afirma o advogado Guilherme Reis, sócio-diretor do escritório Nelson Wilians & Advogados Associados.

O assunto é tão controverso que tem levado o Poder Judiciário a decisões interessantes, como a referente ao Recurso Extraordinário nº 566.622, decidido pela Suprema Corte.

Relatada pelo ministro Marco Aurélio de Melo, a ação colocou em análise quais requisitos, de fato, devem ser cumpridos pelas instituições do Terceiro Setor para que possam usufruir da imunidade tributária estampada no artigo 195, § 7º, da Constituição da República.

"Fazendo valer o texto constitucional, o decidiu, de forma brilhante, que, para o gozo da imunidade tributária das contribuições sociais, basta cumprir apenas os requisitos contidos em lei complementar, ou seja, os três requisitos contidos no artigo 14 do Código Tributário Nacional", explica a advogada Renata Lima, sócia e coordenadora do núcleo do Terceiro Setor do mesmo escritório de advocacia.

De acordo com a advogada, a decisão do STF tornou desnecessária a existência do Cebas para o não pagamento do INSS patronal. "Talvez este seja o momento de esclarecermos que o INSS patronal é uma das contribuições destinadas para a seguridade social. Assim, muitas entidades que possuem o Cebas continuam, por exemplo, pagando de forma indevida o PIS sobre a folha, pois o STF já decidiu que a isenção concedida pela Lei do Cebas abarca também essa contribuição", reitera.

Além disso, as ONGs fazem jus à imunidade do Seguro Acidente do Trabalho (SAT), Risco Ambiental do Trabalho (RAT) e Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), que integram as contribuições sociais. "Somados percentualmente, ultrapassam os 25% da folha de pagamento de uma entidade, ou seja, um quarto da folha de pagamento é destinado indevidamente ao pagamento de contribuições ao governo federal", complementa a advogada.

Renata esclarece também que a esse recurso extraordinário foram atribuídos os efeitos da repercussão geral, ou seja, todas as instâncias inferiores do Poder Judiciário ficaram vinculadas a essa decisão, evitando que os processos em fase de tramitação sejam remetidos ao STF. "Espera-se uma decisão final em menor período de tempo", conclui.

O advogado Marcos Biasioli pensa diferente, principalmente após o acordão da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2028 (ADIN). "Os ministros do Supremo entenderam de forma unânime que cabe ao Estado impor regras por meio de lei ordinária, não só para qualificar o ente social como beneficente (Cebas) – aliás este encargo já está previsto na Loas (Lei nº 8.743/1990) –, mas também o de imprimir sobre ele um controle administrativo, a exemplo de fiscalizatório, em especial se ele ostentar o direito da imunidade."

Segundo o advogado, "quem vislumbrava se alforriar da busca do reconhecimento de entidade beneficente de assistência social (Cebas), para gozar do direito da imunidade tributária, bem como das burocratas prestação de contas e das formalidades contábeis e sociais, se decepcionou. Porém, cabe sublinhar que tais amarras imprimem transparência e compliance, que entregam segurança jurídica aos gestores, evitando as ciladas que estamos assistindo na agenda pública", complementa.

Planos Refeitos

O temor que imperava no Terceiro Setor em relação ao fim da imunidade no recolhimento do INSS patronal levou muitas instituições a pensar em caminhos para minimizar o problema. Para começar, as ONGs seguiram pressionando os poderes Executivo e Legislativo no âmbito dos estados, a fim de mostrar a dura realidade do setor filantrópico brasileiro.

"O fim da imunidade previdenciária acentuaria a crise financeira das organizações e prejudicaria o atendimento à população, pois elas chegam aonde os governos não vão. Hoje, no Terceiro Setor, há muita entrega e pouca remuneração", adverte Eleutéria Amora da Silva, membro da direção executiva da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong), que conta com 270 associadas, sendo um terço da área de educação.

O desemprego e o endividamento também são fatores que preocupam os gestores das organizações sociais, especialmente em tempos de crise. Para amenizar esses efeitos, a revisão de planos e metas já está no horizonte de uma parcela considerável de entidades filantrópicas.

Sediada na área central do Rio de Janeiro, a Casa da Mulher Trabalhadora (Camtra) tem sentido esses efeitos com mais força há, pelo menos, quatro anos. Responsável por atender mensalmente entre 200 e 300 mulheres em situação de risco social, a falta do Cebas – e, portanto, das imunidades – contribuiu para o fechamento de postos de trabalho. Foram dez demissões e a formação de uma dívida previdenciária que hoje chega a R$ 300 mil.

"As ONGs teriam de buscar ainda mais voluntários para poder se adaptar ao fim das imunidades", ressalta Eleutéria, que também responde pela coordenadoria-geral da Camtra.

Para a Fundação Dorina Nowill para Cegos, o impacto negativo da perda de imunidade da cota patronal, caso ocorresse, em números atuais, seria de, no mínimo, R$ 1 milhão, equivalente a cerca de 5% da receita anual da organização (R$ 20 milhões).

Estabelecida na Vila Clementino, Zona Sul da capital paulista, a entidade atende 1.100 pessoas com deficiência visual e presta apoio aos familiares. Ao todo, são realizados 21 mil atendimentos diversos e multidisciplinares com foco na independência e na autonomia dessas pessoas. Para suprir esta demanda, atuam 120 colaboradores contratados em regime de CLT e terceirizados como pessoa jurídica e 365 voluntários.

"Certamente que o término da imunidade previdenciária prejudicaria instituições como a Fundação Dorina. Isto porque nossos projetos atuais e futuros seriam impactados substancialmente, e o planejamento que propomos para os próximos três anos teria que ser refeito. Mesmo assim, nossa meta de aumentar, principalmente, os atendimentos de habilitação e reabilitação às pessoas com deficiência visual deverá ser revista", esclarece o superintendente Alexandre Munck.

Situação similar passaria a Fundação Gol de Letra, que também é isenta do pagamento da cota patronal previdenciária, que levaria 20% sobre o valor dos salários pagos aos 110 profissionais celetistas do quadro de colaboradores.

"O impacto sobre os nossos custos seria enorme. Se considerarmos que 70% dos gastos dos nossos projetos são relativos aos recursos humanos, isso dá a dimensão do que causaria para os nossos projetos – todos eles gratuitos e oferecidos a moradores de comunidades vulneráveis – e para uma organização como a nossa", enfatiza o diretor-geral da entidade, Sóstenes Brasileiro de Oliveira, lembrando que o orçamento para 2017 está estimado em R$ 9 milhões, do qual 60-65% vêm por meio de leis de incentivo.

O fim da imunidade levaria muitas ONGs menores a paralisar suas atividades, concordam os gestores da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) de Santos. Em 2016, a organização obteve uma isenção total de R$ 382.710,00 – um montante mensal de R$ 31.822,00.

"Sem esses recursos não teríamos condições de continuar com nossas atividades e projetos. Esse dinheiro é usado para manter as contas de consumo e os projetos, bem como alimentação, reformas, manutenção e aquisição de material que os convênios não cobrem", explica a diretora Salete de Souza Campos.

A Apae de Santos atende por mês 250 alunos/pacientes, entre crianças, adolescentes e adultos com deficiência intelectual do nascimento ao envelhecimento. Além da prestação de serviços exercida por dez voluntários, a organização tem 47 colaboradores contratados pela CLT.

Se por um lado a reforma da Previdência é tão necessária e urgente, por outro, a retirada das imunidades tributárias das entidades filantrópicas, caso fizesse parte do relatório final e passasse pelo crivo de deputados e senadores, se configuraria em um dos maiores equívocos da história recente do Brasil.

 

Exigências do Artigo 14 do CTN

Em regra, as exigências do artigo 14 do Código Tributário Nacional (CTN) já são cumpridas por todas as entidades do Terceiro Setor, independentemente de títulos ou certificações. Para tanto, exige-se das mesmas que:

Não distribuam lucro, dividendos ou qualquer parcela de seu patrimônio, ou seja, demonstrem que são sem fins lucrativos.
Apliquem todos os recursos integralmente em seus objetivos dentro do território nacional.
Mantenham uma escrituração contábil regular, para que demonstrem através dos registros contábeis, o preenchimento dos dois primeiros requisitos.

Arrecadação

Em 2014, a Previdência Social arrecadou R$ 348 bilhões, dos quais R$ 10 bilhões, ou 3% do total, foram revertidos em imunidade fiscal para as entidades filantrópicas.

A contrapartida gerada pelas organizações sociais foi da ordem de R$ 60 bilhões.

Entre 2012 e 2014, o setor filantrópico recebeu, de isenção do Cebas, R$ 26,7 bilhões, valor equivalente a 26,3% da arrecadação da Previdência Social no mesmo período.

Contrapartidas

De cada R$ 1,00 investido pelo Poder Público, em média as entidades filantrópicas certificadas com o Cebas retornam R$ 5,92

As organizações da área da saúde foram campeãs, retornando R$ 42 bilhões sobre os R$ 5,7 bilhões investidos, perfazendo um índice de valor de 7,35.

Em seguida, as entidades de assistência social, que tiveram isenção de R$ 900 milhões, retornaram R$ 5,1 bilhões ou um índice de valor de 5,73.

Por último, as organizações educacionais, responsáveis por retornar R$ 15 bilhões sobre um montante de R$ 3,8 bilhões em isenção da conta patronal, ou seja, um índice de valor de 3,86.

Fonte: Fonif (2016).
LINKS:
http://www.abong.org.br
http://www.apaesantos.org.br
http://www.camtra.org.br
http://www.fonif.org.br
http://www.fundacaodorina.org.br
http://www.goldeletra.org.br

1A íntegra da PEC pode ser consultada no link: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1514975&filename=PEC+287/2016>.
2A pesquisa do Fonif está disponível em: <http://fonif.org.br/noticias/pesquisas/>.

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