Revista Filantropia: Quem é Marcelo Estraviz e como você entrou na área de captação de recursos?
Marcelo Estraviz: Minha carreira teve início na área empresarial, na qual trabalhava com marketing. Foi graças a essa experiência que tomei contato com o fundraising. Como já atuava como voluntário desde a época de faculdade, ficava buscando maneiras de aliar minha profissão ao voluntariado. Em 1996, fundei com mais algumas pessoas uma produtora cultural e captamos bastante dinheiro por meio das recém-criadas leis de incentivo fiscal.
Mas, meu maior passo se deu pouco depois. Percebi que, apesar de ter aparentemente saído da área empresarial, minhas dúvidas e angústias permaneciam. Eu continuava a ganhar dinheiro como empresário de cultura enquanto outras iniciativas, tão boas ou até melhores que as nossas, penavam para obter patrocínios e geralmente não conseguiam. Foi então que resolvi sair da sociedade, espairecer um pouco e começar do zero em outra área, a social.
Esse tempo em que fiquei afastado das minhas atividades foi fundamental para que eu pudesse me envolver com outros temas. Assisti a palestras, encontros e reuniões; fiz também minhas primeiras consultorias voluntárias; e percebi que estava mais próximo do que eu gostaria de fazer, que era ajudar entidades a obter recursos para sua sobrevivência.
No início de 2000, quando já me considerava um profissional da área, lancei um livro em conjunto com outros autores da coleção Gestão e Sustentabilidade, do Instituto Fonte. Foi uma experiência riquíssima, pois tivemos alguns encontros para integrar o discurso e realizar o primeiro trabalho brasileiro referente ao tema gestão de entidades sociais. Além disso, o livro acabou gerando convites para que eu ministrasse cursos pelo país.
Nesse mesmo período, um grupo de profissionais captadores discutia ética em uma lista de discussão que criei. Esse grupo passou a perceber a importância de atuar de acordo com um código de ética, inspirado em outras experiências internacionais.
Revista Filantropia: E foi a partir dessa lista de discussão que a ABCR foi criada?
ME: Exato! Dos debates que surgiam na lista para a criação de uma associação foi rápido. Foi a partir das idéias discutidas pelos participantes que nasceu a Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR). O curioso disso tudo é que, desde 2001, tive que me desdobrar para atuar em duas frentes, já que passei a trabalhar no Governo do Estado de São Paulo, na gestão do então governador Mario Covas.
Participei de algumas ações públicas que me dão muito orgulho, como a implantação do Acessa São Paulo e a implosão do Carandiru para a implantação do Parque da Juventude. Também fui diretor da Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap). Meu último trabalho público foi na prefeitura, a convite do secretário municipal de Assistência Social, para implantar um novo programa com recursos da prefeitura e da União Européia, dedicado à inclusão social no centro da cidade – “Nós do Centro”.
Após desenvolvermos a metodologia e implantarmos o programa, decidi fazer um novo período sabático, desde o começo de 2007, e que deve encerrar-se no meio de deste ano. Essa nova parada se deu ao notar que, após esses anos em governos, estava mais uma vez me distanciando do meu objetivo, que era sair do modelo institucional para me dedicar a experiências pessoais mais gratificantes. E, aproveitando esse momento, estou terminando meu segundo livro sobre captação de recursos e um outro sobre ativismo social em tempos de web 2.0.
Assim, surge tempo disponível para dar continuidade à ABCR, tanto por meio do novo site como pelas novas ações que estamos promovendo para 2008. Tudo de maneira muito singela, mas altamente prazerosa para mim.
Ainda nos falta consciência sobre a importância da captação de recursos. Nós temos vergonha em falar sobre dinheiro |
Filantropia: Para entrar no assunto: captação de recursos ou mobilização de capitais? Há diferenças entre as terminologias ou não passam de modismos?
ME: Uso muito o termo mobilização de recursos. Mas concordo que muitos termos são modas passageiras. Mas uma coisa é certa, independentemente do termo e da moda, fundraising é uma atuação necessária e clássica no setor social. Falta apenas profissionalizarmos e difundirmos isso pelas entidades, como ocorre em outros países. Gosto do termo mobilização porque ele dá um sentido mais amplo. Captar me lembra “tomar para si”. Já mobilizar, engloba a idéia de usar recursos – não apenas financeiros – para uma causa. Mobilizar energias é mais interessante que captar energias.
Filantropia: Por que a ABCR ficou basicamente paralisada nos últimos anos?
ME: Porque foi, e ainda é, uma atividade desenvolvida por voluntários que têm suas próprias atividades, compromissos e urgências. Estou aproveitando este momento para me dedicar a essa retomada. Se não fosse assim, nenhum de nós, fundadores da associação, teríamos tempo suficiente para nos dedicarmos à causa da entidade.
O objetivo, nesta nossa gestão, será profissionalizar a entidade, mas antes, como sempre ressalta nosso presidente do conselho, René Steuer, vamos agregar valor, mostrar que a existência da entidade é importante e que, por isso, precisamos mostrar serviço.
Filantropia: Quais são as pretensões da atual gestão, com a retomada das atividades da associação?
ME: Tenho dito para a diretoria que devemos realizar ações simples e efetivas. Acredito que uma falha anterior tenha sido a alta expectativa dos fundadores – na qual me incluo. Realizar muitas coisas durante o pouco tempo disponível de cada um é humanamente impossível.
Nesta gestão, começamos pela retomada do site. O próximo passo será pequenos encontros com associados. Em breve, realizaremos cursos certificados por nós e por entidades internacionais, como a Association of Fundraising Professionals (AFP) e a Resource Alliance, por exemplo. Nossa gestão tem mais dois anos pela frente. Se em 2010 a ABCR estiver profissionalizada e tivermos nos transformado em centro de excelência reconhecido, teremos cumprido nossos objetivos.
Filantropia: Quais os benefícios oferecidos aos associados da ABCR?
ME: Por enquanto, não abrimos vagas para novos associados. Devemos fazê-lo no início de 2008, assim que organizarmos um sistema on-line de inscrição e pagamento. Mas, como disse, precisamos mostrar que somos úteis, criar valor. Tendo feito isso, os novos associados terão benefícios concretos, como descontos em cursos e eventos exclusivos. Hoje, somos pouco mais de 200 associados, todos comprometidos com um código de conduta. Mais do que agregarmos milhares de associados, queremos associados comprometidos com uma ética profissional que contribua para uma sociedade mais justa, por meio do fortalecimento de entidades que defendam causas.
Os americanos sabem o prazer que é doar e o aprendem desde criança. Nós somente seremos bons captadores se vivenciarmos a experiência de que doar é uma delícia |
Filantropia: Como a ABCR se relaciona com outras entidades do setor no Brasil e no exterior?
ME: Nossos principais parceiros internacionais são a AFP, nos EUA, e a Resource Alliance, na Europa. Neste momento, estamos nos aproximando de associações similares no Chile e na Espanha. Diria que esse trabalho internacional foi o que de melhor se fez nas gestões anteriores da ABCR. Cabe replicar esse relacionamento com outras entidades aqui no Brasil.
Com base em minha própria experiência, tenho interesse pessoal em nos aliarmos à Associação Brasileira de Marketing Direto (Abemd) e à Associação Brasileira de Anunciantes (ABA) para realizarmos concursos de cases de fundraising entre empresas que doam recursos e agências publicitárias que apóiam entidades de forma pro bono. A realização de prêmios sempre estimula o setor e profissionaliza os envolvidos pela lógica da melhoria da qualidade por meio da concorrência saudável.
Um de nossos vice-presidentes, Michel Freller, está realizando um excelente trabalho de aproximação com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para, juntos, podermos aprimorar e repassar conhecimento para o setor quanto a processos jurídicos envolvidos na captação. Outro caminho mais convencional é estreitarmos a relação já existente com o Instituto Ethos e com o Grupo de Institutos Fundações e Empresas (Gife). Neste segundo caso, posso adiantar que estamos organizando um evento em parceria, que em breve será anunciado.
Filantropia: Atualmente, como você analisa o setor de captação de recursos no Brasil? Há profissionalismo ou o amadorismo ainda é predominante?
ME: Diria que falta consciência sobre a importância dessa tarefa. Se visitarmos ONGs na Europa, ficaremos encantados com os departamentos de captação de recursos, cheios de profissionais, com campanhas para pessoas físicas, jurídicas, buscadores de recursos de fundações e governos. Aqui no Brasil, infelizmente, ainda estamos muito longe disso.
Nós temos vergonha em falar sobre dinheiro. Falamos como se fosse algo sujo, uma imoralidade. As entidades brasileiras, em sua maioria, são administradas por técnicos sociais, o que amplia ainda mais o distanciamento da tarefa em buscar recursos para sua sobrevivência. Preocupam-se muito com o atendimento de qualidade ao seu público-alvo, mas se esquecem de pensar em como continuar os atendendo. Sem contar que muitos ainda acham que correr atrás de recursos é um acinte. Preferiam estar em suas entidades dedicando-se somente a atender seus objetivos sociais.
Mas sou um otimista irreparável; vejo que a profissionalização do Terceiro Setor caminha lado a lado com a profissionalização da captação de recursos. Teremos boas histórias para contar daqui em diante. Porém, o lado ruim dessa história é que muitas entidades perecerão junto com a defesa de várias causas. Sobreviverão apenas as que forem capazes de mobilizar aliados.
Filantropia: Com a expansão e o fortalecimento do Terceiro Setor no Brasil, a mobilização de recursos tornou-se uma área desafiadora dentro das organizações?
ME: Tudo é desafiador no Terceiro Setor. E captar não é exatamente um grande problema. Ao contrário, é a solução para amainar os desafios das entidades. É a área que possibilita que as causas continuem sendo defendidas.
Filantropia: Qual a posição do Brasil em relação a países como os EUA, que possuem um mercado forte e profissionalizado há muitos anos? Se possível, dê outros exemplos.
ME: O Brasil ainda está engatinhando. Para falar sobre isso, teria que abordar a história da captação no país, em perspectiva com a realidade americana e européia. Costumo dizer que, nesse caso, somos mais parecidos com o modelo europeu do que com o americano. Nós ainda falamos de dinheiro com vergonha. Já os EUA falam de dinheiro sem sentimento de culpa. Lá, qualquer cidadão se envolve com atividades sociais de forma pragmática: compra um brinde com a marca da ONG ou vai a um jantar beneficente mesmo sendo muito mais caro, pois sabe que o lucro obtido irá para uma determinada causa. Eles fazem assim porque seus pais, avós, bisavós também faziam.
Eu comento em minhas aulas que isso só ocorre porque os americanos sabem claramente o prazer que é doar e o aprendem desde criança. Nós somente seremos bons captadores se vivenciarmos a experiência de que doar é uma delícia. Os europeus estão percebendo isso agora também, por isso gosto de acompanhar a trajetória do fundraising por lá, pois esse desenvolvimento se assemelha ao nosso em idade.
Filantropia: Sabe-se que um projeto mal elaborado, ou mesmo mal redigido, tem menos chances de ser aprovado e de conquistar os recursos. Quais são os “sete pecados” cometidos pelos profissionais neste setor?
ME: Realizar projetos é uma das muitas atividades do captador. Se você se refere a projetos para obtenção de recursos por meio de fundações internacionais, por exemplo, diria que existem dois grandes pecados: a falta de clareza ao fazer um orçamento, que geralmente não contabiliza recursos já existentes; e o excesso de otimismo na proposta. Vale mais a pena ser realista, mostrar as dificuldades que podem surgir, inclusive apontando e contabilizando isso. Fazendo dessa maneira, o doador perceberá que quem fez a proposta é um gestor sensato e pragmático.
Mas se você se refere a projetos para obtenção de recursos com empresas, os pecados são outros: dependendo da postura do captador em uma reunião, ele pode perder oportunidades por falta de visão. Outro erro vem em decorrência do anterior: por não privilegiarem o relacionamento e, sim, a busca de recursos imediatos, não conseguem gerar confiança no potencial doador. Ainda existem, porém, muitos outros pecados, que variam conforme a situação em que se encontra o profissional.
Filantropia: O profissional que capta recursos para uma ONG pode ser o mesmo que trabalha para uma instituição educacional? Como se dividem as sub-áreas dentro da captação de recursos?
ME: Não pode, não! A ABCR defende claramente a profissionalização da captação de recursos por meio da criação de departamentos de mobilização dentro das entidades. Esses profissionais devem trabalhar para uma única entidade. Não dá para confiar em um captador que tenha em sua “carteira de projetos” uma infinidade de causas. Soa estranho.
Imagine a cena: “Hoje tenho mico-leão dourado e criança com câncer, qual vai querer, patroa?”. Não é coerente. Um dos problemas é que existem muitos profissionais assim aqui no Brasil... Uma pena, pois as entidades que dependem deles desaparecerão em breve, junto com suas causas.
Filantropia: Você acredita que, hoje, as entidades buscam mais transparência frente a seus stakeholders, seja na apresentação do orçamento de seus projetos, na clareza da destinação dos recursos ou na prestação de contas?
ME: Acho que sim, mas ainda é insuficiente. Sou partidário à transparência absoluta, não apenas das entidades, mas de governos, políticos e tudo que se relacione às tarefas públicas. Minha opinião é que, a partir do momento que as entidades recebem recursos de governos, empresas e pessoas físicas, esse dinheiro torna-se público e, por isso, deve ser demonstrado no site da entidade como ele foi gasto, quanto sobrou, quanto falta, quanto custou isso ou aquilo.
Filantropia: Como o profissional deste setor pode se aprimorar?
ME: Fazer cursos sobre o tema que se trabalha ajuda bastante, assim como ter grande curiosidade por pesquisar sobre as fundações e as empresas. Mas não é só isso. Nos estatutos da ABCR, consta uma tarefa que será preciso realizar na próxima década, que é a de oficializar a profissão, para que ela conste no código brasileiro de profissões. Isso é uma necessidade, embora insuficiente. Pela ABCR, pretendemos trabalhar para esse fim, além de gerar uma formação que possa ser minimamente certificada, o que ainda não existe no Brasil.
Profissionais carregam suas certificações por seus estudos fora, na Universidade de Indiana ou em outras entidades certificadoras. Temos conversado com a AFP para, em um primeiro momento, criarmos uma certificação mista AFP/ABCR e, em seguida, termos uma certificação brasileira, contendo as nossas realidades.
É importante frisar que o fato de um captador ser associado da ABCR não o certifica instantaneamente. Cabe sempre a sintonia do captador com a causa que está contratando. Uma defesa que venho fazendo para entidades pequenas é a de que contratem recém-saídos das universidades, que têm o sincero interesse em crescer junto com a entidade. Isso permite que, aos poucos, possam receber melhores salários assim que a entidade passa a receber mais recursos. É um modo saudável de as entidades começarem seus departamentos de mobilização de recursos.
Filantropia: Uma polêmica – Você é a favor do comissionamento do captador de recursos? Qual a maneira mais justa e honesta de remunerar este profissional, ou este trabalho deveria ser exclusivamente voluntário?
ME: Sou terminantemente contra. Da mesma maneira que não faz sentido um captador “vender” mico-leão dourado e criança com câncer simultaneamente, não faz sentido um captador reter parte de uma doação. Como você, sendo doador, se sentiria ao saber que 10% do dinheiro que acabou de doar para reformar uma creche foi parar no bolso do captador? Você não preferiria que esses 10% se transformassem em telhas? Para esse tipo de situação, existe algo mais simples e clássico: a contratação como funcionário. Com isso, o profissional receberá seu salário assim como qualquer outro funcionário da entidade. Essa é a nossa defesa.
Filantropia: A ABCR está prevendo algum evento em 2008?
ME: Para 2008, além dos encontros com os associados e a realização do primeiro curso certificado, temos o objetivo de fortalecer os núcleos regionais, que hoje são três, além de São Paulo: Porto Alegre, Rio de Janeiro e Belém. Devemos fazer um evento em Salvador (BA), para fortalecer a rede de captadores no Nordeste do país.
Também estamos organizando os temas mais interessantes para a realização de eventos para não-sócios. Conforme os projetos forem se concretizando, disponibilizaremos as informações em nosso site.
Links www.captadores.org |
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