Personagem marcante do movimento paulista pela inclusão social de grupos menos favorecidos, Pe. Julio Lancellotti definitivamente não é um homem de meias palavras. Ao ser questionado sobre diferentes temas que envolvem o setor social brasileiro, suas respostas eclodem como um tiro de canhão: potente, certeiro e desafiador. Ele expõe claramente suas opiniões, com a segurança de quem conhece o assunto de perto, fazendo muita vezes de sua voz um instrumento de luta.
Sua vida sempre foi marcada pelo trabalho social. Sacerdote católico, formado em pedagogia e teologia, Pe. Julio foi professor primário e universitário e trabalhou no Serviço Social de Menores – onde seu pai também atuava – e que depois deu origem à Secretaria Municipal de Assistência Social. Em seguida, participou com Dom Luciano Mendes de toda a fundamentação da Pastoral do Menor da Arquidiocese de São Paulo. Integrou ainda os grupos de fundação da Pastoral da Criança e de formulação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Concomitantemente, desenvolveu fortes laços de atuação junto a menores infratores, detentos em liberdade assistida, pacientes com HIV/Aids e populações de baixa renda e em situação de rua. Suas iniciativas fazem parte de um projeto de vida pessoal e social que acredita na pessoa humana acima de tudo, como imagem e semelhança de Deus e como cidadãos que devem ter seus direitos respeitados.
Em 1991, em resposta às imposições do ECA, fundou a Casa Vida, entidade que acolhe crianças abandonadas, de ambos os sexos, portadores de HIV/Aids. Como vigário episcopal do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo, está à frente de alguns dos principais projetos municipais de atendimento a essa população. Como é o caso do programa A Gente na Rua, composto por agentes comunitários de saúde, ex-moradores de rua.
Nesta entrevista à Revista Filantropia por telefone, Pe. Julio Lancellotti fala de seus projetos atuais e comenta com acidez os últimos acontecimentos que envolveram o seu trabalho e o público a que assiste.
Revista Filantropia: O que motivou a fundação da Casa Vida?
Julio Lancellotti: A Casa Vida surgiu a partir da promulgação do ECA, em 1990, como uma resposta ao fim dos grandes orfanatos e ao surgimento de abrigos mais inseridos nas comunidades e nos pequenos grupos – que tivessem muito mais uma vivência, uma convivência familiar e comunitária –, assim como prevê o estatuto. Na ocasião, ao visitar a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), eu vi que as crianças com HIV/Aids estavam em uma situação muito difícil e necessitavam de atenção – imagine tanto tempo atrás a compreensão que se tinha da doença. Ao todo, 130 crianças, adolescentes e jovens já passaram pela Casa Vida e, atualmente, 30 ainda residem conosco.
Filantropia: Quais as características principais do trabalho com crianças e adolescentes portadores de HIV/Aids?
JL: A defesa e a qualificação da vida. Nós acompanhamos nesse tempo todo o desenvolvimento de terapias novas e diferentes, as novas possibilidades. É um trabalho bastante complexo, difícil, que envolve muitos fatores: qualidade de vida, saúde, atendimento psicológico e emocional, apoio àqueles que trabalham com as crianças, a questão da perda, do luto, da doença, da vida.
Filantropia: Qual a sua visão do atendimento público oferecido às pessoas com HIV/Aids?
JL: Houve um desenvolvimento muito grande a partir da atuação das entidades da sociedade civil, que pressionaram o poder público para que tenhamos programas adequados para as crianças e adolescentes e para os doentes de Aids em geral. Foi uma conquista da sociedade civil organizada.
Filantropia: Fale da importância do programa A Gente na Rua, do qual o senhor foi o idealizador.
JL: Esse programa nasceu do Dia de Luto do Povo da Rua, que todo ano é vivenciado pela população de rua e pelas entidades que a acompanha. Quando o tema foi a saúde, apareceu então a possibilidade de termos, assim como existia o Agente de Saúde da Família, o Agente Comunitário de Saúde da Rua. Foi um longo processo de maturação e discussão, pois insistimos para que os agentes fossem pessoas que tivessem a vivência de rua. A idéia foi amadurecendo, caminhando e, no último ano da gestão da Marta Suplicy na Prefeitura de São Paulo, nós demos início ao projeto com a seleção de 11 agentes. Apesar de alguns problemas, conflitos e dificuldades, os resultados apareceram logo e foram muito bons.
Com a entrada da dra. Maria Cristina Curi na Secretaria Municipal da Saúde, nós conseguimos ampliar o programa para 35 agentes mais assistentes sociais, enfermeiros e pessoal administrativo. Assim, o A Gente na Rua cresceu muito e passou a ser visto na sua consistência e seriedade, na resposta de vida que estava dando, no envolvimento das pessoas que viviam em situação de rua. Agora, no dia 20 de outubro, nós tivemos um seminário de 2 anos que foi arquitetado pelos próprios agentes comunitários de saúde na rua (Leia mais na seção Acontece). O evento fez um balanço desse projeto – eu acredito que único no Brasil – e que dá uma resposta realmente muito positiva, muito importante, seja na transformação na vida do agente, seja na sua ação social como autor social e de saúde.
Filantropia: O sucesso do A Gente na Rua deve-se ao fato de os agentes serem ex-moradores de ruas, diferentemente de outros projetos?
JL: Os agentes são pessoas que viveram aquela situação e tiveram suas vidas muito transformadas por isso. Por uma sucessão de fatos, eles conseguiram resgatar a auto-estima, a identidade e a capacidade, o que trouxe um diferencial muito grande ao projeto. O sucesso se deve, principalmente, pelo A Gente na Rua trazer para a prática concreta aquilo que muitas vezes só ficava no discurso: o protagonismo das pessoas em situação de rua.
Filantropia: Qual a real situação das pessoas que vivem nas ruas? O que a administração pública tem feito em relação a esse grupo.
JL: A situação é diferenciada nos vários estados. São Paulo conta hoje com uma lei, que teve um longo percurso até ser aprovada e regulamentada [a lei nº 12.316, de 16 de abril de 1997, dispõe sobre a obrigatoriedade do poder público municipal a prestar atendimento à população de rua da cidade de São Paulo. Mas a população de rua é heterogênea, por isso não se pode dar sempre a mesma resposta. Albergue não pode ser a única resposta, nós precisamos de moradia, moradias provisórias, a questão do trabalho, das cooperativas. É uma complexidade muito grande que deve ser contemplada.
Além disso, alguns fatos chamam muita atenção. Em Paranaguá (PR), depois da denúncia do Padre Adelir Antonio de Carli sobre a tortura dos moradores de rua, o secretário de Segurança Pública da cidade, Álvaro Domingues Neto, foi exonerado. Por outro lado, nós vimos há pouco, no Rio de Janeiro, o caso daquela senhora que foi assaltada por um morador de rua e atirou nele. Ao ser condecorada na Câmara Municipal do Rio, ela declarou que lugar de morador de rua é em alto mar, o que é uma coisa estarrecedora. Ela ganha a mais alta comenda da cidade do Rio de Janeiro e diz que lugar de morador de rua é em alto mar!
No dia 26 de outubro, um morador de rua morreu diante do gabinete do prefeito de São Paulo e seu corpo ficou estirado no chão por oito horas até que se tomasse alguma providência. Nós temos o massacre dos moradores de rua, que completou dois anos sem nenhuma elucidação; um crime que continua impune, apesar da repercussão internacional. Esse é o retrato da população de um país que se mostra intolerante, incapaz de dar respostas ao povo da rua. Mas também vemos sinais de esperança. O presidente Lula, por exemplo, se reuniu nos últimos três anos, na antevéspera do Natal, com a população de rua, de catadores, com os agentes comunitários de saúde, as frentes de trabalho, os grupos de cooperativa. É um misto de sinais de esperança com sinais de intolerância, que está muito grande e fortemente presente na sociedade brasileira.
Filantropia: O senhor demonstra publicamente sua insatisfação com algumas ações governamentais. Atualmente, o que tem motivado a sua luta?
JL: A questão da violência e da impunidade é muito forte, mas também tem a busca de políticas públicas. No seminário do dia 20 de outubro, o secretário Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, Floriano Pesaro, falou dos laços que os moradores de rua têm lá em São Miguel; e que, por isso, ele quer abrir um albergue naquela região. Mas ele não considera que os que estão no centro também têm laços? Foi por isso que eu disse que fico muito feliz que a prefeitura descobriu que o povo da rua também tem sentimentos e que devem ser respeitados, tanto os de São Miguel quanto os do centro. E eu também atuo fortemente para denunciar essa política higienista que foi imposta em São Paulo pela administração José Serra.
Filantropia: No começo do ano, o senhor se envolveu em uma manifestação pública contra a Revista Veja, que na matéria “A solução é derrubar” (8/1/2006) defende claramente um projeto de revitalização do centro de São Paulo e tenta desqualificar o seu trabalho social. Fale sobre esse caso.
JL: A Revista Veja me solicitou uma entrevista. Fez a entrevista comigo, não publicou uma linha e divulgou uma matéria que deve ter sido encomendada pela administração Serra. Inclusive porque aquela matéria de fundo, “A solução é derrubar”, mostra exatamente isso: o higienismo, a intervenção urbanística na cidade de maneira inadequada. Aquela matéria foi estudada por arquitetos, por urbanistas e foi rejeitada. São pessoas que conhecem as áreas que ali foram citadas e sabem que aquelas propostas haviam sido abandonadas há muito tempo. Além disso, a matéria teve o repúdio de muitos jornalistas. A revista Veja recebeu muitos cancelamentos de assinaturas e também foi inundada de e-mails – só da Itália vieram cerca de 2.000 –, que protestaram contra a forma como aquilo foi colocado. Então, a gente vê que esse é o retrato de São Paulo. Eu não nasci na cidade de São Paulo, por isso acredito que eu possa dizer com a autoridade de quem tem a cidadania paulistana. Tudo isso é a cara de São Paulo: racista, imperialista, colonialista, discriminador e preconceituoso! A Veja é o retrato de São Paulo.
Filantropia: Na sua opinião, qual o segredo do setor social e qual a sua importância numa sociedade democrática?
JL: O trabalho social não pode substituir o Estado, e o Terceiro Setor não é esse tapa-buraco. Nós precisamos entender que o trabalho das entidades sociais é política pública complementar, feita em parceria. Eu acredito também que o Terceiro Setor acaba crescendo porque o Estado se torna ausente. É fundamental exigir que o Estado não se torne ausente e não queira jogar nas costas das entidades sociais a sua incompetência.
Filantropia: A religiosidade sempre caminhou de mãos dadas com a filantropia. Qual a importância da fé no trabalho social?
JL: A fé tem de ter uma verificação social. Não se pode ter uma fé que não tenha incidência na sociedade. A fé, seja qual for o credo religioso, tem hoje uma incidência social e precisa manifestar a sua identidade. As igrejas, de várias religiões, não fazem um trabalho de proselitismo, mas de humanização, democratização e dignidade da vida humana. Isso é muito importante, é um fator religioso e de todas as religiões.
Filantropia: O senhor está envolvido com outros trabalhos sociais?
JL: Existe o projeto dos acompanhantes comunitários de idosos. O presidente da República acaba de sancionar a nova Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa, no sentido de que o idoso deve ter acompanhamento de saúde domiciliar. Nós já iniciamos esse trabalho no Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto, em parceria com o poder público. Esse projeto tem dado um passo de humanização da vida, humanização da cidade e defesa dos idosos. Os próprios agentes estão descobrindo que nessa cidade existe um porão, e nesse porão,
Os idosos estão sofrendo.
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