James Cavallaro

Por: Elaine Iorio
01 Abril 2006 - 00h00

A população de São Paulo passou por momentos difíceis entre os dias 12 e 19 de maio, quando a média diária de mortes por arma de fogo chegou a subir de 20 para 50. Sob forte tensão por causa dos ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC) contra policiais, seus familiares e outras vítimas – além de diversas rebeliões organizadas pela facção criminosa dentro e fora do estado –, poucas pessoas se aventuraram a sair às ruas depois das 20h. Na segunda-feira do dia 15, a capital paulista viveu um verdadeiro toque de recolher imposto pelo medo.

Recuperado do susto, o paulistano teve a impressão de que o barulho do trovão foi, na maioria dos casos, maior que a tempestade. Boatos sobre ataques a escolas, shopping centers e estações de metrô se espalharam pela internet e por boca a boca, provocando uma onda de terrorismo psicológico sem precedentes. Terror incentivado, diga-se de passagem, por alguns veículos da mídia, exitosos pelo aumento nos números do Ibope.

O certo é que o episódio reascendeu o debate a respeito das ações de segurança pública. Por todos os cantos, as rodas públicas de discussão batiam nas mesmas teclas: a falta de controle da violência por parte dos órgãos competentes, a possível atuação de grupos de extermínio dentro da corporação policial e a crença de que os direitos humanos só defendem o interesse dos bandidos.

Disposta a conhecer a opinião de quem está no alvo das críticas, a Revista Filantropia conversou por e-mail com James Cavallaro, fundador e vice-presidente da Justiça Global, uma organização não-governamental dedicada à promoção dos direitos humanos no Brasil.

Nesta entrevista, ele comenta sobre os últimos acontecimentos, destaca a importante contribuição das entidades de direitos humanos para a democracia do país e tenta esclarecer os motivos que levam as organizações ao descrédito por grande parte da população brasileira.

Revista Filantropia: Por que a Justiça Global foi fundada?
James Cavallaro: A Justiça Global foi fundada em 1999, e nossa idéia era de contribuir em uma área ainda pouco desenvolvida pelas ONGs de direitos humanos do Brasil. Ou seja, na utilização dos mecanismos internacionais de direitos humanos e na documentação das violações.

Filantropia: Qual a relação da entidade com o poder público?
JC: A Justiça Global, com a finalidade de garantir independência, não recebe fundos públicos. Assim, nossas ações frente ao poder público visam denunciar as violações de direitos humanos, incidir nos processos de formulação de políticas públicas baseadas nos direitos fundamentais, impulsionar o fortalecimento das instituições democráticas e exigir a garantia de direitos para os excluídos e vítimas de violações de direitos humanos.

Filantropia: Qual a posição da entidade perante a onda de ataques atribuídos ao Primeiro Comando da Capital (PCC) entre os dias 12 e 19 de maio?
JC: Para a Justiça Global, os ataques ocorridos em São Paulo representam uma confluência entre a incompetência das autoridades do Estado, do poder judiciário e da própria polícia, conjugada com a ação de um grupo criminoso organizado, que há muitos anos vem se articulando e se fortalecendo dentro e fora dos presídios.
Apesar da tentativa de autoridades de São Paulo em desviar o cerne da questão, atribuindo as causas dos ataques à fragilidade da legislação penal, o que não se pode compreender ou aceitar é o fato de o governo deste estado
saber do plano para tais ataques com 20 dias de antecedência e, mesmo assim, não avisar a polícia, não tomar medidas de precaução ou prevenção para os ataques. Por quê? Se sabiam das ameaças de ataques vindouros contra a
polícia e de rebeliões em série, porque o Estado de São Paulo não tomou providências?

Filantropia: O senhor acredita que os órgãos responsáveis pela segurança pública estão preparados para atuar em situações de crise?
JC: Apesar do difícil momento que atravessa a sociedade brasileira, a Justiça Global chama a atenção das autoridades estaduais e federais sobre a necessidade de respostas à altura do problema, que não são, em absoluto, a caça desenfreada de “bandidos” e a execução sumária de mais pessoas. A questão da segurança pública é complexa demais para ser lidada de forma amadora por polícias civis ineficientes e uma corporação militarizada.
No entanto, não nos iludamos que esses conflitos serão resolvidos sem que haja uma mudança estrutural, que priorize a geração de emprego e o desenvolvimento de políticas sociais que apontem perspectivas reais para a juventude e para os trabalhadores. Essas mudanças devem estar associadas a uma outra concepção de política de segurança pública, baseada em investimentos urgentes e contínuos em inteligência policial; em investigações sérias e coordenadas entre as polícias, o ministério público e o poder judiciário; e em medidas concretas para por fim à corrupção que atinge os poderes públicos.

Filantropia: Na sua opinião, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo teve atuação adequada neste episódio?
JC: De forma alguma. As autoridades de São Paulo foram incompetentes, ineficientes e, pior, negligentes. Para além da violência inaceitável do PCC, a omissão resultou em mais de 100 mortes. E, como resposta para a opinião pública, a polícia mais uma vez abriu mão da investigação dos ataques criminosos e partiu para a matança, com um forte componente de vingança pelas mortes de seus colegas.
A resposta que todos vimos, e testemunhamos, foi tardia (mesmo a transferência estabanada de membros do PCC na quinta-feira), desorganizada e retórica. No auge da crise, no domingo do dia 14, para espanto de qualquer pessoa lúcida, o governador Cláudio Lembo chegou a declarar: “a situação está totalmente sob controle”.

Filantropia: Em relação à atuação da polícia, o senhor acredita que possa ter havido execução ou abuso de poder?
JC: Diversas pesquisas acadêmicas, de ONGs e dados da Ouvidoria de Polícia de São Paulo indicam que grande parte dos registros de “resistência seguida de morte” são, na verdade, execuções cometidas pela polícia, com tiros pelas costas, na nuca ou na cabeça. Os dados disponíveis até o momento sobre mortes em confronto com a polícia indicam que houve excesso sim.
A violência policial tem sido alimentada por governos estaduais como sinônimo de eficiência. Esse fato já estava explícito na fala do atual Secretário de Segurança
Pública do Estado de São Paulo, Saulo de Castro Abreu Filho, em 2003: “não há uma tendência de crescimento dessas mortes em confronto com a Polícia Militar”. Segundo ele, a alta no número de confronto com criminosos “está relacionada com a elevação do efetivo nas ruas”. Ou seja, a eficiência policial está centrada no número de mortos que a sua ação produz.
Um dos problemas cruciais concentrase no fato de que a polícia, da maneira como existe hoje – concebida nos anos de ditadura militar, na linha da ideologia da segurança nacional, e dividida em Polícia Militar e Civil – não atende às necessidades da sociedade e de um governo democrático, colocando em pauta a discussão sobre a sua reforma.

Filantropia: O senhor tem conhecimento sobre algum estudo atual a respeito de grupos de extermínio dentro da corporação policial?
JC: Em 2003, a Justiça Global lançou em parceria com o Núcleo de Estudos Negros (NEN) o relatório Execuções Sumárias no Brasil – 1997-2003, em que, além de outros assuntos, abordamos a ação dos grupos de extermínio no Brasil. Nesse estudo, que se baseou em uma pesquisa de campo de nossa equipe, identificamos que os grupos de extermínio nascem como estratégia de comerciantes, empresários e outros segmentos da sociedade para abolir grupos sociais ou políticos “indesejados”.
Faz parte de uma cultura arraigada à sociedade brasileira, que tem se utilizado de grupos de extermínio para promover a chamada “limpeza social”. Fenômeno mais recente, identificado a partir do final da década de 1980,
são os grupos de extermínio a serviço do crime organizado, em especial do narcotráfico e do roubo de cargas. Em todos os casos de grupos de extermínio pesquisados por nossa equipe, pudemos identificar a participação de agentes
do estado, em especial de policiais.

Filantropia: Qual é o maior problema do sistema penitenciário brasileiro atualmente? Qual a solução?
JC: O Brasil vem apresentando um forte crescimento da população carcerária desde a década de 1990. Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), entre 1995 e 2003 a população de encarcerados no Brasil cresceu 93%. Esse aumento vem se tornando estrutural e se consolidando como um dos mais graves e desafiadores problemas da atualidade. Em dezembro de 2004, o Brasil contava com 336.358 presos.
Em dezembro de 2005, o número subiu para 361.402. A grande maioria cumpre pena em regime fechado. Nesse sentido, São Paulo vive um drama incomparável. Nas prisões paulistas concentram-se mais de 138 mil presos. O Rio de Janeiro é o segundo estado que mais encarcera no Brasil. Em dezembro de 2005, registrou-se 23.054 presos no sistema penal e 4.755 nas delegacias de polícia daquele estado.
Em todo o Brasil convivemos com um enorme abismo entre o que é real e o que é legal. Porém, é no sistema penitenciário que essa distância se torna mais dramática. A Lei de Execução Penal (LEP) é uma de nossas
leis mais avançadas, apesar de ter sido elaborada em 1984 e, evidentemente, necessita de complementações. Por outro lado, a LEP é, sem dúvida, a lei mais descumprida de nossa legislação.
Setenta por cento dos estados da federação separam os presos pela facção criminosa, a média nacional de presos que estudam é de 17%, apenas 16% dos estados possuem patronato, só 20% contam com escola de formação penitenciária e em 70% não existe plano de cargos e salários para os funcionários da secretaria responsável. Sendo assim, as prisões vão se consolidando como instrumento de solidificação da exclusão, executando a pena de morte social.

Filantropia: Qual a posição da entidade perante as críticas em relação à atuação das organizações em defesa dos direitos humanos – como falta de democracia nas atividades e defesa apenas dos interesses dos criminosos?
JC: De fato, quando a criminalidade se converte em um problema, observa-se com freqüência a emergência de uma constante: frente a criminosos cada vez mais violentos, aumenta o apoio público a ações mais duras por parte dos governos. Essas ações muitas vezes significam apoio às violações de direitos humanos cometidas por agentes do estado.
A profusão nos rádios, jornais e televisão da exploração sensacionalista da violência, quase sempre em consonância com o já citado preceito do “entender menos e punir mais”, dirige o corpo social a um falso clamor por justiça, que
é habilidosa e demagogicamente manipulado pelo Estado na perpetração da violência, travestida como resposta à criminalidade. Nesse contexto, os defensores de direitos humanos que atuam no âmbito urbano, principalmente os que trabalham com questões de segurança pública e sistema penitenciário, têm sofrido ataques que vão desde a sua desqualificação social e moral, associando-os à imagem de defensores de bandidos, até ameaças de morte e assassinatos.

Filantropia: Como as entidades atuam em situações de ataque a policiais ou civis, como a que aconteceu recentemente?
JC: As organizações de defesa dos direitos humanos sempre expressaram sua preocupação com a vulnerabilidade dos agentes do estado. Vulnerabilidade que resulta em grande parte de treinamento técnico deficiente, de baixa remuneração e de uma política de segurança pública baseada no confronto, em detrimento de investigação e serviço de inteligência. As forças policiais passam mais tempo monitorando o trabalho de ONGs e movimentos sociais do que  redes criminosas no asfalto ou nas favelas. São várias as organizações que oferecem assistência a familiares de vítimas da violência, sejam elas agentes públicos ou não.

Filantropia: Frente a essas constantes reclamações sobre a atuação dos direitos humanos, não seria a hora de as organizações governamentais e ONGs se unirem para uma campanha de conscientização da população?
JC: Essa foi justamente uma das propostas aprovadas na 10ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, que aconteceu entre os dias 31 de maio e 2 de junho em Brasília (ver seção Planalto).

Filantropia: O Brasil tem avançado nas discussões e práticas de defesa dos direitos humanos em geral, como democracia, trabalho, discriminação, tortura e segurança?
JC: A despeito de toda a mobilização da sociedade civil e do retorno à democracia, persiste no Brasil um quadro de graves violações de direitos humanos. Os avanços no campo dos direitos humanos civis e políticos no país se deram mais no seu aspecto formal que no prático. Apesar de ter ratificado os principais instrumentos globais e regionais de proteção de direitos humanos e de ter incluído e reconhecido várias diretrizes para a proteção dos direitos humanos na Constituição Federal de 1988, há de fato no Brasil um enorme descompasso entre a norma e sua aplicação. Houve nos últimos anos, principalmente na década de 1990, uma maior mobilização da sociedade civil em torno da temática de direitos humanos, envolvendo diversos setores da população. Muitas entidades não governamentais foram criadas nesse período, incorporando as mais diversas lutas de direitos humanos, principalmente no que diz respeito à raça, à orientação sexual, ao gênero e, desde o início dos anos 90, aos direitos humanos econômicos, sociais e culturais. Em razão da diversidade de temáticas, o fortalecimento da sociedade civil está ocorrendo por meio
da ampla articulação das mesmas em grandes conselhos, redes e fóruns, a exemplo do Conselho Nacional de Criança e Adolescente, da Articulação das Mulheres Brasileiras, da Plataforma Dhesc Brasil, do Fórum Nacional pela Reforma Agrária e do Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos.




 

 

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