Esquecemo-nos com frequência de revisitar a história cultural humana. Usamos expressões como “novas mídias” ou “novas tecnologias”, e acreditamos piamente que estas possibilitaram uma “democratização do acesso”, exclusiva dos dias de hoje, a qual depende apenas de computadores, tablets e smartphones – cada vez mais baratos – e uma conexão que amplia o domínio de seu território progressivamente e de forma eficaz.
Antes de tomarmos isso como verdade, vale perguntar: se hoje temos novas tecnologias, quais são as velhas? A novidade está nos aparelhos? No uso? Se realmente há uma democratização de acesso, de que acesso estamos falando? Em qual momento saímos do antigo não democrático e entramos no novo, com acesso livre? Além disso, temos acesso a que mesmo? Claro que estas são somente provocações, mas, honestamente, quando o tempo parou para que pudéssemos definir que hoje estamos em uma nova era midiática?
Tomemos o YouTube como exemplo. Ele aparenta ser uma ferramenta recente, porém, não saberíamos nos portar diante dele se a televisão não tivesse aparecido antes, nos acostumando com a ideia das imagens técnicas dentro de nossas casas e escolhidas por nós. É óbvio que o YouTube possibilita uma quantidade maior de conteúdos e uma resposta mais imediata por parte do usuário, mas não podemos nos esquecer que ‘zapear’ e ‘medição de audiência’ também são indicativos da preferência do telespectador. A televisão não surgiria se o cinema não nos tivesse possibilitado experimentar a imagem em movimento. O cinema, por sua vez, não apareceria se a fotografia não tivesse sido desenvolvida.
Pensando na nossa história cultural, as bases para o surgimento da fotografia datam do final do século XIV. Foi o homem renascentista que, com sua pintura em perspectiva, passou a representar fielmente cenas do humano e da natureza. Até então, pintávamos majoritariamente figuras sagradas e sobre humanas. Se os nossos ancestrais não tivessem feito aquele primeiro esforço de registro nas paredes das cavernas, não teríamos desenvolvido essa vontade de expressar a nós mesmos, nosso cotidiano, nossa subjetividade e nossas crenças, temas frequentes nos nossos desenhos e pinturas, bem como nos vídeos que hoje postamos. Então, qual de fato é a velha mídia? Até hoje pichamos e grafitamos nossos muros, e, claro, fotografamos e filmamos os mesmos. As práticas se complementam, mas nunca desaparecem, e todas são midiáticas. Mídia é uma palavra de difícil definição, mas a raiz de seu significado passa pela ideia de ‘estar entre’, a mídia será aquilo que está entre nós. O telefone é o que se põe entre você e pessoa para quem você ligou, um livro é o que está entre mim e a história contada, a televisão está entre a empresa de comunicação, composta por um grupo de pessoas, e toda a população que assiste aquele determinado canal.
Entramos, então, em outro ponto fundamental: o uso. Falamos sempre em democratização do acesso, entretanto, talvez fosse mais interessante pensar em democratização da produção. A tal interação midiática só pode acontecer se houver resposta do receptor. De fato, esse sujeito hoje tem uma gama muito maior de ambientes para se manifestar, entretanto, a prática não tem nada de novidade. Explicando melhor: pensando no acesso, basta lembrar que um celular desligado é simplesmente isso, um aparelho que não funciona. O mesmo vale para um computador, para a televisão, para uma hidroelétrica ou até mesmo um livro. Livros fechados, que não são lidos, é conhecimento que não é aprendido. Dependem por completo de um ser humano, tanto para seu funcionamento e uso quanto para sua manutenção, atualização.
Pensando em termos de produção, a comunicação racional é uma das grandes marcas da espécie humana, que transforma a natureza e imprimi carga simbólica em tudo que faz. Vejam, é claro que os animais se comunicam, mas esta é uma comunicação instintiva. O homem, desde os primórdios, transforma a natureza em técnica e amplia seu domínio – territorial, cultural e simbólico. Um gorila pode atacar outro que o ameaça usando uma pedra; já os primeiros seres humanos se defendiam projetando possíveis ataques. Com um pedaço de pau e uma pedra talhada o homem pré-histórico fazia uma lança, e com esta caminhava para se proteger caso um predador ou inimigo cruzasse seu caminho. O gorila não é capaz de fazer previsões e usar a natureza a seu favor; só o homem é. Essas projeções manifestadas através da manipulação da natureza foram fundamentais para a formação de consciência da espécie.
Precisamos modificar a natureza para criar nossos aparatos técnicos, seja no caso de uma lança ou pigmentos para desenhar nas paredes das cavernas, seja para construir um prédio ou desenvolver uma câmera fotográfica. Não estou equiparando uma lança a uma câmera, mas fundamentalmente o processo de produção parte do mesmo lugar: exploração de recursos naturais para ampliarmos a nossa sobrevivência e presença.
Agora, pensemos sobre o caráter simbólico de nossas criações. Uma fotografia é o registro do olhar do fotógrafo, que parte das mais variadas razões para criá-la: uma lembrança do aniversário de um ano do filho, um registro de uma cena de guerra, uma selfie. Todos têm em comum a escolha do momento da foto, do enquadramento, há valor simbólico. Assim como os primeiros desenhos pré-históricos, que são cenas inspiradas no ambiente e nas vontades do homem primordial, carregadas de simbolismo.
Quando falamos em evolução não se trata de melhora ou piora; trata-se de aumento de complexidade. Uma fotografia é mais complexa – do ponto de vista da produção, em termos simbólicos não há como medir – que uma pintura na caverna de Lascaux na França. Mas a primeira não surgiria se o esforço de criação da segunda não tivesse ocorrido. Logo, o decorrer do tempo é fundamental para compreendermos nossa história. Não é interessante parti-lo e acreditar que práticas ficaram para trás, ultrapassadas, e que agora estamos em um novo processo. Se fizermos isso, ignoramos nossa história cultural e perdemos uma parte fundamental para que possamos entender um pouco melhor nossa existência, sem encantamentos cegos, típicos dos que acham que os aparelhos tecnológicos vão salvar o mundo, esquecendo-se de que quem os usa são seres humanos. Também não podemos nos fechar numa redoma crítica e não participar do aumento da complexidade da espécie humana. Como afirma o Prof. Dr. Norval Baitello, a cultura é cumulativa. Esta é uma boa ideia para ser incorporada socialmente e individualmente.