A estação Itaquera do metrô de São Paulo ainda começa sua movimentação matinal. Os futuros passageiros dos vagões lotados, agora nas filas de todos os dias, não conversam entre si. Com os fones de ouvido à mostra, comunicam sua decisão de não quererem ser incomodados.
Na improvável expectativa de um discípulo de Edgar Morin, a maioria das pessoas escreve em seus minúsculos teclados touch. Quem está longe sempre tem a preferência da atenção.
Na área externa, no terminal de ônibus intermunicipal, o 2370 da empresa Sol de Prata encosta suavemente na plataforma 16, em mais uma viagem cumprida, depois de rasgar a parte Leste da chamada Grande São Paulo.
Depois de duas horas de viagem, o coletivo despeja seus passageiros, sonolentos e pontuais. Descem três operários, o vendedor de seguros, a comissária de bordo, o desempregado e, em seguida, o casal Bertioga.
Decerto o somatório de suas idades do casal não chega a quatro décadas de vida e suas razões de ali estar apenas são compreensíveis pelo que ainda virá: ele, com nome francês, estatura acima da média, penteado retrô que lhe confere a confirmação da personalidade marcante.
Alain veste roupa escura, pesada, e já demonstra certo cansaço daquela nova rotina. De sua decisão de ser escritor, ainda não veio o movimento definitivo. Mas passeia pela ideia e desconfia de seu potencial, como todo jovem que anseia o sucesso e o sonho da autossustentação, de preferência pelo caminho escolhido. A cada manhã, Alain subverte a lógica e vence o sono, a distância e a ambiguidade dessa vida que ainda há de vir.
Ela, Svetlana. Nome russo, sorriso de brasileira. Linda. Lembra, sem esforço estético, Audrey Hepburn em Bonequinha de luxo. Esguia, sílfide, parece planar quando se desloca. Diz tudo com gestos. Explica-se pela sonoridade despretensiosa de quase 18 anos. A vida é bela, o paraíso é um comprimido. Quer ser bailarina, mas nada que queira agora parece definitivo. A não ser viver cada dia a seu tempo e descoberta. Tem nos olhos os segredos da raposa de sete caudas que enterrou o graveto verde no topo da montanha.
Os dois são estudantes, conviventes e batalhadores de futuro. Cursam Tecnologia Aplicada. Trazem nas mochilas um projeto de vida adulta, o suprimento que a família insistiu. Não querem nada que não seja seu.
Metrô da linha vermelha superlotado. Alain, como um verdadeiro cavalheiro, ampara Svetlana. Ele pode. Tem porte e força. Ela se esgueira e se dá por satisfeita. A jornada prossegue subterrânea. O metrô leva-os por quase uma vintena de estações artificialmente iluminadas. A trilha é matinal, mas a verdadeira luz demora a chegar. O dia começa antes do alvorecer, porém só recebe a anuência do sol no instante em que desembarcamos na estação Marechal. A odisseia da madrugada é sombria, no entanto, enche-se de ânimo quando ascendemos as escadas para desembocar numa manhã morna. Ainda faltam uns 350 metros de caminhada. Moleza, se pensar que foram vencidos mais de 40 quilômetros em dezenas de paradas. Esse caminho é feito em seis dias da semana.
Eles têm diversas controvérsias na rotina, contudo, a maior dificuldade está exatamente na locomoção. Passam mais tempo nos meios de transporte do que na própria faculdade. Ao dividirem atividades cotidianas, o tempo gasto em viagens age como um empecilho para a concretização de coisas comuns e trabalhos acadêmicos.
Quando param para pensar em todos esses fatores, dão-se conta da importância e da posição da família diante dessa etapa de suas vidas. Observam muitas outras pessoas que dividem essa realidade com eles, algumas para trabalhar, outras para estudar; independentemente do motivo, sabem que não é algo tão incomum.
Sabem que nada é simples ou descomplicado. Querem o que querem e sabem que tem um preço. Pagam agora e aos poucos descobrem o nicho do que é um desabrochar. A primavera vai chegar. Quando ela vier, seus espíritos estarão cevados pela glória do insistir. Aquilo que faz deles hoje um dueto, um casal, sobretudo uma força da natureza que sabe, precisa e deseja alterar seu curso de vida. Quem viver verá.