A sociedade encontra-se ligada ao direito, fazendo-o nascer das suas necessidades fundamentais e, em seguida, deixando-se disciplinar por ele, recebendo ainda da chamada “ciência das leis” a estabilidade e a própria possibilidade de sobrevivência.
Em suma, no direito se encontra a garantia das condições julgadas necessárias à coexistência social, definidas e asseguradas pelas normas, que criam, por fim, a ordem jurídica. Dentro dela, no Estado organizado, sociedade e indivíduo compõem o seu destino.
Nesse contexto, a sociedade contemporânea, assustada com o terrorismo transnacional e com o aumento de facções criminosas, clama a seus governantes uma imediata contrapartida legal que ponha obstáculos à escalada do medo que impera nos quatro cantos do mundo.
Sendo o Direito Penal o mais político dos ramos do direito, pois através dele o governo estabelece as condutas inaceitáveis para a sociedade, nossos governantes tendem a adotar preceitos penais que visam a “reduzir” os direitos e garantias individuais para responder imediatamente aos anseios sociais.
É a chamada legislação de pânico, ou simbólica, cuja promulgação ocorre, via de regra, em tempo recorde, após pouco ou nenhum debate legislativo. Surge, assim, o chamado Direito Penal do inimigo, demonstrado na teoria do doutrinador alemão Günther Jackobs como base das políticas públicas de combate à criminalidade.
Por essa doutrina, a sociedade elege o seu “alvo”, ou “inimigo”, e contra ele vale tudo: desde penas arbitrárias até a flexibilização dos princípios e regras de imputação. O inimigo se distingue do cidadão. Ao inimigo veda-se o direito e as garantias das normas, pelo fato de ele não aceitá-las e colocar insistentemente o sistema em risco, e por ter uma periculosidade prévia e permanente. Como exemplo de inimigos da atualidade, pode-se citar: os grupos terroristas que apavoram o Ocidente, os narcotraficantes latino-americanos e os membros de facções criminosas.
O Direito Penal do inimigo, quando colocado em prática, embora seja uma aspiração social, fere frontalmente o Estado Democrático de Direito, mostrando-se perigoso e inaceitável por abalar juridicamente os princípios e garantias constitucionais fundamentais.
Independentemente da gravidade da conduta do agente, ele há de ser punido como pessoa que praticou o crime, e não como um combatente, como um inimigo do Estado e da sociedade. A conduta, por mais desumana que pareça, não autoriza o Estado a tratar o ser humano como um ser irracional. O infrator ainda é um ser humano.
Observamos que o denominado Direito Penal do inimigo abriga dois fenômenos criminais: o simbolismo do Direito Penal e o punitivismo expansionista, capaz de agregar em um mesmo ninho o conservadorismo e o liberalismo penal. Os paradigmas preconizados pelo Direito Penal do inimigo mostram toda a incompetência estatal, ao reagir com irracionalidade, ao diferenciar o cidadão “normal” do “outro”. A excepcionalidade há de ser negada com o Direito Penal e Processual Penal constitucionalmente previstos, na medida em que a reação extraordinária afirma e fomenta a irracionalidade.
Ao fazer uma construção jurídico-analógica, tentando traçar um paralelo entre o Direito Penal do inimigo e as ONGs, percebe-se que as organizações não governamentais têm sido vítimas de um verdadeiro processo de estigmatização. Lemos diariamente nos jornais do país e assistimos nos meios de comunicação matérias que tentam transformar o termo ONG em sinônimo de corrupção e em algo que precisa ser execrado da sociedade.
O termo filantropia quase sempre é transformado inadvertidamente em algo pejorativo por articulistas populistas e pela mídia insana, ávida por vender seus periódicos, o que faz com que a sociedade crie uma ideia errada das entidades sociais.
Com o conceito estigmatizado, surge o descrédito popular e, por conseguinte, a diminuição do fluxo de investimentos capazes de fomentar e financiar o Terceiro Setor. As doações diminuem, as empresas se retraem para não firmar parcerias e o poder público reluta em firmar convênios e até mesmo em manter os já existentes.
Existem, sim, problemas; existem aqueles que praticam crimes sob o manto de organizações sociais, mas generalizar significa colocar todas as entidades sérias no mesmo nível das entidades corruptas. O problema se agiganta quando o poder público, em vez de fiscalizar as organizações sociais corruptas, tenta a todo custo criar entraves para a administração e manutenção das entidades que primam pela correção e visam única e exclusivamente a colocar em prática os seus objetivos sociais. Criam-se leis inconstitucionais, decretos autoritários, resoluções esdrúxulas, tudo para coibir a proliferação do possível novo “inimigo” dos cidadãos: as organizações não governamentais.
Somando-se a isso, nossos tribunais, que outrora davam guarida às entidades sociais valendo-se dos preceitos elencados na Constituição Federal, se movimentam agora no sentido oposto, sendo por vezes injustos e contraditórios. Desprezam princípios jurídicos, como o do Direito Adquirido, do Contraditório e o da Hierarquia das Normas, e autorizam, por exemplo, que simples decretos infraconstitucionais emanados pelo poder público se sobreponham à legislação magna estampada na Constituição Federal de 1988.
Concluindo, ao ser admitido o Direito Penal do inimigo, que é o oposto do Direito Penal do cidadão, consagra-se o Direito Penal do autor, que pune o sujeito pelo que ele é, e não por aquilo que ele faz.
Ao aceitar que se rotule o termo ONG como sinônimo de corrupção, nivelam-se todas as organizações sociais por baixo e estigmatiza-se todo um setor social positivo, afrontando assim a própria cidadania. Em ambos os casos, acontece o afastamento do ideal de justiça, suprimindo direitos e garantias dos cidadãos e flexibilizando princípios fundamentais do direito.
| Paulo José Carvalheiro Advogado criminalista, sócio da Advocacia Associada Criscuolo, consultor em Direito Penal da Advocacia Sergio Monello, consultor jurídico de entidades do Terceiro Setor, especialista em Direito Penal e Processual Penal, com aperfeiçoamento acadêmico pela FGV/SP. |




































