Diário de um Diário de um voluntário voluntário

Por: Ricardo Marcelo de Oliveira
01 Julho 2005 - 00h00
Valete de copas, eis que um três sortudo fechou a série. Era apenas mais um jogo amistoso de truco em uma tarde chuvosa de sábado, durante uma festa de um grupo de jovens beberrões. Enfim, o trivial. E eu, eliminado na última rodada, acompanhava a partida.

Foi quando Gabriela entrou no jogo, do seu jeitinho, é claro. Ela tinha cerca de 5 anos de idade e batia na mesa segurando bolachas de papelão como se fossem cartas. Resolvi acompanhá-la na brincadeira, pois, como perdedor, eu não estava tão amistoso assim. Logo a paciência deles acabaria: ou me colocavam de volta no jogo ou seria expulso da mesa. Até hoje acho que tomaram a decisão errada...

Fui brincar com a Gabriela no deck da piscina e lá aprendi o que chamam de má infl uência da televisão. Afinal, que vontade é essa que as crianças têm de voar? Lógico, com a ajuda dos adultos, agarrando-as debaixo dos braços e as girando em torno de nós mesmos. Logo eu, um árduo praticante do sedentarismo. Três vôos do jato invisível da meninamaravilha e os meus foguetes, digo, braços, se esgotaram. Mas a energia dela estava intacta como seus braceletes blindados.

Ela não entendia nada. Uma mulher que voa em jato invisível com um biquíni das cores da bandeira americana? Eu deveria ter usado a Florzinha, a Lindinha ou a Docinho. Repeti a brincadeira até dizer: “Olha, a tia Cris faz você voar mais alto que o tio”, e ela correu até a tia, que também aproveitava aquela festa. Admito que fui desonesto com o entusiasmo dela, mas também tenho meus limites, e ainda tinha chance de voltar a jogar.

E o que aconteceu durante o resto da tarde não merece mais linhas, já que o tema a ser trabalhado aqui é voluntariado, não é? Então, uma semana depois daquele dia, um imprevisto marcou a minha vida e de alguns colegas, tornando-nos voluntários. Isso foi há 6 anos.


Destino

Alguns carros cruzavam faróis vermelhos para levar gestantes a um hospital e trazer uma nova vida ao mundo. Outros ultrapassavam os limites para tirar vidas inocentes de nossos olhos.

Gabriela era filha de um grande amigo meu, Renato. Pai separado, naquela tarde ele havia deixado a garota com a mãe dela. Bom, acredito que seja melhor eu parar por aqui, pois não houve a quem condenar naquele dia. Porém, eu me condenei, por não ter feito aquela força de vida decolar com seu jato imaginário sobre o azul da piscina...

Curvas da vida! Você derrapa, cai e se levanta. No dia seguinte, eu estava criando capas de livros e revistas, e um mês depois já agendava outra festa. O Renato, entretanto, chorou por mais alguns meses. Pelo menos até o Natal seguinte.

Movido por esses pensamentos que sopram em nossa mente, os quais os fiéis chamam de “luz” e os moderninhos de insight, ele foi às lojas de brinquedo comprar presentes. A compra não foi para sua filha, mas para mais de 40 crianças. Ele justificava o que não precisava ser justificado: “Todo ano eu reservava uma boa quantia para gastar com ela nesta data. Agora, eu preciso fazer algo para conter o que está dentro de mim”. E eu não podia deixá-lo só nesse momento. Com os carros abarrotados de sacolas, formamos um grupo de amigos e seguimos para um orfanato de uma cidade vizinha. Percorremos longo trajeto, deixando os prédios para trás. Foi preciso enfrentar estradas esburacadas até acabar o asfalto e sobrar apenas os buracos que antecedem as vielas de terra.

O meu pensamento esmiuçava o que encontraria pela frente. Como seriam? Jovens ou crianças? Maltrapilhos ou uniformizados? Mal-encarados ou angelicais? Delinqüentes ou educados? Pensamentos burgueses que nem deveriam passar pela minha cabeça devido a minha origem simples. E que se mostram fúteis quando se entende a filantropia.

Depois de horas de carro, encontramos o portão forrado de sorrisos. Ao descer, escutei uma sinfonia de piar que nenhum viveiro do mundo pode soar. Como uma criança pode dizer tantas vezes a palavra tio sem parar para respirar? Era melhor atender aos pedidos antes que algum desmaiasse.

Uns olhinhos mais espertos já fitavam as sacolas. E como controlá-los? Sabiam que dentro daqueles plásticos brancos estavam sonhos e sorrisos. E por que não relembrar também aquele sentimento gostoso que você tinha, até algum chato lhe contar que renas não voam?

Entramos pelos portões da simples casa, em um bairro simples, de um lugar que alguém, de seu gabinete, esqueceu de pensar. Quantos abraços, apertos de mão e beijos sujos de doces. Diferente de nossos filhos e sobrinhos, a quem temos de implorar por um afeto. No princípio imaginei ser a norma da entidade – as senhoras que administravam o lugar poderiam os obrigar a receber bem todos que chegassem. Eu e mais um pensamento inútil. Aquilo era carência!

Eles não tinham os tios que nossos filhos têm para levá-los ao futebol. Pais para comprar revista de colorir no domingo de manhã. Avós para servir bolinho de chuva nas tardes molhadas. E principalmente: mães para dar aquele beijo de boa noite. O que para nós se tornou mesmice, para eles era o essencial que nunca tiveram.

As horas passaram rápido. Jogamos bola, empinamos pipas, recordando aonde se laçavam as linhas de um papagaio. Servimos doces e salgados para mãos tão pequenas que ficavam indecisas entre o pé-de-moleque e o cachorro quente. A festa foi o evento do ano para eles. Nosso amigo Cláudio conseguiu, apesar dos enchimentos de espuma e do sol de 37ºC, manter viva a lenda do bom velhinho.

À noite, em uma pizzaria já de volta à cidade, os garçons olhavam estranho para aqueles velhos maltrapilhos, sujos e falando alto, o que contradizia meus primeiros erros da manhã. Eram muitas as histórias interessantes. Uma brincadeira. Um beijo ganhado. A fala de uma criança que deixou um adulto embaraçado. Copos cheios, brindes e mais brindes.

Estávamos orgulhosos. O corpo estava dolorido, mas o pensamento planava levemente. Não importava o quanto fora desgastante. A recompensa foi cada sorriso que conseguimos arrancar deles. E as palavras foram se unindo, sintetizando nossas expressões sujas e felizes. Até alguém entoar: “O corpo está moído, a alma lavada e o coração limpo”.

E foi assim que me tornei voluntário. Sacrificando um dia qualquer do meu tempo. Para levar àquelas crianças um dia que ficará marcado em suas vidas. Uma tarde em que fui além dos meus limites para içar vôos de corações e mentes que não merecem ter seus sonhos roubados. Como daquele anjo que jogava baralho com bolachas de papelão.”

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