A Campanha De Captação De Recursos Mais Comentada Dos Últimos Anos
Recentemente, a campanha americana The Ice Bucket Challenge, ou “desafio do balde de gelo”, ganhou incrível visibilidade nas redes sociais e na mídia. Algumas pessoas gostaram, e outras não, mas de uma coisa ninguém pode discordar: a campanha foi um fenômeno em arrecadação de recursos para uma organização que trabalha com uma doença não tão conhecida e disseminada: a esclerose lateral amiotrófica (ELA). De acordo com os dados da ALS Association — organização americana que promove esta campanha —, ela arrecadou mais de US$ 100 milhões em 30 dias. Comparando com o mesmo período do ano passado (US$ 2,2 milhões), o resultado surpreende: é 50 vezes maior. Mais de 3 milhões são pessoas que realizaram a primeira doação para a organização e esse número não para de crescer. Incrível, não?
Desenvolvo campanhas de engajamento público e captação de recursos de pessoas físicas há mais de 15 anos e, depois de acompanhar o debate nas redes sociais, iniciei uma reflexão sobre a campanha baseada nas informações publicadas no site da ALS Association e na mídia, focando nos aspectos de captação de recursos.
As organizações costumam ter a seguinte dúvida: “a causa da nossa organização não é tão forte, como podemos arrecadar fundos?”, ou “existem causas mais importantes, como criança e meio ambiente, como conseguiremos?”.
A resposta é sempre a mesma: todas as causas são importantes, merecem ser tratadas com respeito e, no mundo diverso de hoje, há espaço para buscar apoiadores para todos. Neste caso específico, a ELA é uma doença não tão conhecida e que atinge um grupo pequeno de pessoas, se comparada com outras doenças. Mas nem por isso ela deve ser ignorada. Isso demonstra que, independentemente da causa, uma boa ideia, se bem implementada, tem grande potencial de mobilizar recursos.
A campanha foi inspirada na história de Pete Frates, antigo capitão de um time de beisebol, esporte tão tradicional nos EUA quanto o futebol no Brasil. Em 2012, ele foi diagnosticado com ELA, uma doença neurodegenerativa progressiva e fatal que afeta as células do sistema nervoso e da medula, causando uma paralisia motora irreversível. A campanha começou no mundo esportivo. O banho de água com gelo é comum no esporte americano para comemorar uma grande vitória ou um título. Então, para essa causa, a demonstração faz certo sentido. Mais recursos para pesquisa podem significar avanços ou até uma vitória.
O apoio de Pete Frates, que desde que descobriu a doença tem uma ligação forte com a causa e com a organização, foi essencial para esse sucesso. Ao longo dos últimos dois anos, Frates buscou construir uma rede de amigos e simpatizantes que organizaram eventos para levantar fundos para a pesquisa sobre a ELA. Ele é uma celebridade com forte vínculo com a causa. Então, há um ponto adicional: o ícone inicial da campanha já tinha uma relação real com a causa e, para ele, ela é muito relevante. Escolher bem a celebridade inicial é essencial, mas a campanha só se tornou um sucesso quando milhares de pessoas começaram a aderir. A campanha extrapolou as fronteiras que a organização controlava, momento em que as pessoas “tinham” que participar – feio era ficar de fora.
No Brasil, isso ainda não é muito comum, mas desenvolver campanhas criando desafios para captar recursos para uma organização é uma forma muito difundida nos EUA e na Inglaterra, entre outros países. Muitas pessoas iniciam campanhas de captação de recursos para realizar uma corrida ou outras atividades. Apesar de não termos essa tradição, a campanha trabalha com um formato muito popular onde foi criada.
Um dos principais fatores de sucesso é a conexão. Na linguagem de captação de recursos, “peer to peer fundraising” é a captação de recursos com seus pares, mas isso não significa necessariamente conexão com a causa. A fortaleza da campanha é a conexão entre as pessoas. Então, apesar de arrecadar um valor incrível e ter um número enorme de pessoas que realizaram a primeira doação, os próximos passos é que definirão a campanha. Até o momento, essa campanha é como um evento, com data de início e término. Se analisarmos o compromisso futuro dos doadores com a organização, a pergunta é se a ALS Association conseguirá transformar esse doador pontual em um doador comprometido e que realiza doações em longo prazo.
Essa campanha utilizou uma forma ousada e divertida para captar recursos, envolvendo as pessoas em uma ação. Apesar de o desafio ser tomar um banho gelado ou doar, de acordo com muitas matérias sobre o assunto nos EUA, as pessoas fazem ambos: contribuem e aceitam o desafio, disseminando a campanha e conquistando novos adeptos. Isso contribui de forma essencial para a propagação da campanha. O resultado seria completamente diferente se fossem vídeos somente solicitando uma doação para uma causa. Vale destacar o papel importante que milhões de pessoas realizaram nessa campanha: elas foram os captadores de recursos. O pedido de doação foi realizado, na sua maioria, por pessoas comuns.
Uma organização precisa estar preparada para receber os novos doadores. É necessário ter uma base de dados, um sistema para o recebimento de doações eficiente, um formulário seguro e fácil para a realização da doação e um servidor que sustente o aumento do tráfego adicional gerado pela campanha. Imagine se eles não estivessem preparados? As pessoas não conseguiriam doar e o resultado seria bem diferente.
Essa é uma campanha baseada no marketing viral, o que significa que não tem um alto custo de investimento. Por outro lado, uma organização perde o controle quando utiliza marketing viral, pois a campanha fica nas mãos dos participantes e, a partir daí, tudo pode acontecer, para o bem ou para o mal. Ninguém esperava esse resultado surpreendente em montante arrecadado, número de doações, número de vídeos, comentários, compartilhamentos, participação das pessoas (celebridades ou não), disseminação da informação e participação internacional.
Quando uma campanha tem o apoio de uma celebridade, principalmente que esteja alinhada com a causa, normalmente os resultados são mais expressivos. Neste caso, a campanha foi iniciada no mundo do esporte, com celebridades próximas a Frates. Mas, com todos os componentes de uma campanha viral, ela rapidamente se “alastrou” para celebridades mundiais de esportes, negócios, música, artes, entre outros. E o mais importante: as pessoas comuns aderiram. São pessoas como eu e você que somamos as mais de 3 milhões de novas doações. É muito difícil uma campanha atingir tantas pessoas mundo afora, disseminar tanta informação sobre uma causa e bater níveis recordes em captação de recursos com pessoas físicas em curto espaço de tempo, como a da ALS Association, a menos que sejam campanhas de emergências relacionadas com grandes desastres naturais, como, por exemplo, o tsunami na Ásia ou o terremoto no Haiti.
Algumas pessoas comentaram que existem doenças mais importantes que precisam de recursos. Ou epidemias mais urgentes. Eu não acredito que deveria existir competição sobre qual é a causa mais importante. Todas as causas são importantes e essa campanha pede recursos para esta, especificamente, sem desmerecer nenhuma outra.
A campanha é um sucesso em arrecadação de recursos para uma causa não tão conhecida e este caso deve ser utilizado para reflexão e aprendizado. Isso mostra, mais uma vez, que todas as causas podem encontrar seu espaço. Por outro lado, estamos falando de sucesso financeiro. Quem trabalha com captação de recursos sabe que esses doadores não necessariamente realizarão uma segunda ou terceira contribuição. E para isso existem outros formatos de campanhas que buscam doadores fiéis a uma causa e contribuem por muitos anos.
Outros argumentaram que as celebridades estavam participando para se promover. Isso também pode ser verdade, mas uma boa campanha não é aquela que traz benefícios mútuos? Quando uma empresa doa, as organizações não têm um pacote de contrapartidas que oferece exposição da marca, entre outros benefícios? Por que as celebridades não podem contribuir para uma campanha e se promover? Aliás, muitas delas nem precisam de semelhante exposição.
Outras perguntas relevantes: A ALS Association ou qualquer outra organização conseguiria captar mais de US$ 100 milhões sem o apoio de celebridades? A campanha é baseada no marketing viral, mas conseguiria essa abrangência?
E os resultados: imagine o benefício que esse recurso vai gerar e o número de pessoas que ficarão informadas sobre essa causa. E imagine quantas pessoas descobrirão que todos podem doar e que, com um pouco de cada um, podemos fazer muito!
Vale lembrar que essa é uma campanha americana criada no contexto americano. Agosto é alto verão, beisebol é um esporte tradicional, o banho de gelo faz parte da cultura, entre outras coisas. Como em qualquer campanha realizada fora do país, boas ideias inspiram, mas dificilmente uma campanha que utiliza componentes culturais pode simplesmente ser copiada. É preciso colocá-la no contexto local. Várias celebridades brasileiras aderiram ao desafio e também doaram (ou não) para a ALS Association ou outra organização brasileira. Mas essa não é uma campanha brasileira, criada para captar recursos aqui. Para isso, teríamos de considerar, por exemplo, a crise de água que estamos enfrentando, o combate ao desperdício, entre outros fatores culturais. Enfim, pensar em outro desafio para outra causa ou para a mesma, mas dentro da realidade brasileira, é o nosso desafio.
Campanhas criativas e que conectem as pessoas são essenciais para o sucesso na captação de recursos de pessoas físicas. Normalmente buscamos a conexão da pessoa com a causa. A ALS Association ousou, arriscou e continua colhendo os frutos financeiros. Em longo prazo será necessário fazer outra análise para saber se realmente a causa entrou na agenda de, pelo menos, uma parcela das pessoas que doaram neste momento. Mas também temos de analisar se o objetivo, neste caso, não era só o dinheiro e a visibilidade. Se era, já foi atingido. E com muito sucesso.
Quando desenvolvemos uma campanha, precisamos estabelecer objetivos claros para permitir uma avaliação correta. Às vezes, somos muito temerosos com o tipo de campanha que devemos desenvolver. Para crescermos, podemos nos inspirar nessa campanha, utilizando componentes que conectem pessoas a pessoas e a causas, que envolvam, engajem, e, principalmente, que no final elas decidam contribuir para um mundo melhor para todos, respeitando as escolhas de cada um, inclusive de doação, e descubram como é bacana fazer a diferença. Reforçando esse ciclo em que as organizações e as pessoas contribuem e convidam novas pessoas para apoiar uma causa, desenvolveremos um ciclo virtuoso em que todas as causas só têm a ganhar.