Como Estimular a Filantropia no Brasil?

Por: Maria Cecília Prates Rodrigues
09 Junho 2016 - 04h14

 

No Brasil, o termo filantropia costuma ter sentido pejorativo, associado a assistencialismo, ajudas paliativas que não buscam a solução para os problemas sociais e até disfarce para a corrupção (ou “pilantropia”). Já nos Estados Unidos e na Europa, tende a prevalecer uma acepção positiva, relacionada a doações dos indivíduos, das famílias e das empresas (de dinheiro e/ou de tempo) em benefício dos mais necessitados, com o significado de generosidade e de contribuição por um mundo melhor. No fim do ano passado, Elie Horn, grande empresário brasileiro e fundador do grupo Cyrela, anunciou que pretendia doar mais da metade do seu patrimônio, estimado em US$ 1 bilhão, e fez um veemente apelo para que mais pessoas, sobretudo empresários, aderissem à filantropia no país. Qual é o atual estágio da filantropia no Brasil? Será que a filantropia deveria mesmo ser estimulada entre nós?

Inicialmente, vale a constatação de que a filantropia não é ainda um valor cultural para o brasileiro. Tomando por base o Índice Mundial das Doações de 2015, levantado pelo Charities Aid Foundation (CAF) para 145 países, o Brasil está classificado entre os piores, na 105ª posição. A explicação não está nas condições socioeconômicas do país. Basta ver, por exemplo, que esse índice nos EUA (país rico) e no Quênia (país pobre) é bem superior do que no Brasil, como ilustra a tabela a seguir. Ambos os países detêm respectivamente o 2º e o 11º lugar.

Por Que as Pessoas Fazem Filantropia?

Pode-se dizer que as pessoas fazem filantropia por duas razões principais. A primeira envolve a obrigação moral e o sentimento de poder retribuir pelo muito recebido em vida. Indo nessa linha de raciocínio, Elie Horn argumenta que o que estimula o comportamento pró-filantropia da pessoa é a sua crença religiosa. Para ele, “esse assunto é muito lógico. Há dois tipos de pessoas, os crentes e os não crentes. Para o crente, Deus existe e, em consequência, há vida eterna e algo além desta vida. Já o não crente só pensa nesse mundo e nada mais. Se Deus não existe, meus atos não têm consequência, ajo por egoísmo, gasto em barcos, aviões, o diabo a quatro, mimo meus filhos e estrago o mundo”, em entrevista para a revista Valor de 27 de novembro de 2015.

A meu ver, o aspecto religioso pode, de fato, ter papel relevante, mas possivelmente não se trata de uma relação tão direta, como supõe Horn, e mereceria ser mais bem estudado. A esse respeito, veja que, nos três países considerados anteriormente, o percentual de cristãos, aí incluídos católicos e protestantes, se mostra bem parecido entre eles: 88,9% no Brasil, 84,8% no Quênia e 78,3% nos EUA. Já a categoria dos não afiliados a uma religião é de 2,5% no Quênia, 7,9% no Brasil e 16,4% nos EUA, conforme dados da Pew Research Center:

Religion & Public Life de 2010 (http://www.pewforum.org/ files/2012/12/globalReligion-tables.pdf ). Assim, em uma análise grosso modo, o Brasil não pareceria ser um país tão menos religioso do que os outros dois.

A segunda causa tida como influenciadora do comportamento filantrópico das pessoas e empresas é a legislação tributária nos países, tema que também mereceria ser objeto de aprofundamento. No caso do imposto sobre heranças, a título de exemplificação, tome-se aqui os casos do Brasil e dos EUA. Em nosso país, a alíquota média desse imposto (Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação – ITCMD) é de 4%, podendo chegar ao teto de 8%. Por sua vez, no país norte-americano a alíquota do imposto sobre heranças é bem mais elevada, com média de 29% e podendo chegar ao teto de 40%. Então, o argumento é de que os bilionários dos EUA acabam sendo induzidos a fazerem doações filantrópicas ou a criarem os seus próprios institutos e fundações para não se verem compelidos a transferir parte substancial de suas fortunas para os governos. Assim, ao mesmo tempo que fogem da sanha arrecadatória do governo, ainda usufruem o retorno privado da filantropia: perpetuam o legado da família, contribuem para a imagem de suas empresas e, se a filantropia for do tipo estratégica (na linha do que preconizavam Porter e Kramer), ainda beneficiam a lucratividade dos negócios.

Já no que se refere aos incentivos fiscais de imposto de renda, a alegação é a de que esses incentivos são bastante limitados no Brasil. Primeiramente, no caso das empresas, apenas aquelas tributadas pelo regime do lucro real, que são poucas (em torno de 15 a 20% no país), podem auferir do benefício da dedução do valor doado. Em segundo lugar, os limites de dedução são muito baixos, podendo chegar a um total de no máximo 4% (empresas) e 6% (pessoas físicas) do imposto de renda devido. Terceiro ponto, os procedimentos exigidos para viabilizar essas doações são tão burocráticos que afastam os potenciais doadores. E, por último, não há liberdade de escolha para qual organização filantrópica a pessoa ou a empresa quer doar; é apresentado a elas um cardápio restrito de projetos e iniciativas previamente aprovados pelo governo para receberem esses recursos incentivados. Hoje em dia, a precondição é que sejam projetos vinculados ao Estatuto da Criança e do Adolescente, ao Fundo do Idoso, às leis de incentivo à cultura e ao esporte e às leis de apoio às pessoas com deficiência e câncer.

Potenciais Riscos: as Críticas à Atuação Dos Filantropos

Há duas maneiras de os indivíduos, as famílias e as empresas fazerem filantropia. A primeira delas é atuando como executores da ação social, por meio de trabalho voluntário, iniciativas pontuais de benemerência e/ou de projetos sociais planejados e avaliados.

A segunda é pela atuação sobretudo como financiadores da ação social, mediante doação direta de dinheiro para as organizações sociais executoras das ações sociais ou por intermédio da criação de fundações e/ou institutos próprios.

Nos EUA, essa distinção entre financiamento e execução é bastante nítida para Pedro Abramovay, na revista Valor de 30 de outubro de 2015. Lá a legislação estabelece uma separação entre a função das fundações privadas, que têm patrimônio e fazem doações (granters), e das chamadas ONGs (organizações não governamentais, ou charities, ou grantees), que captam os recursos e executam com certa autonomia os seus projetos sociais. São os casos, por exemplo, da Fundação Bill & Melinda Gates e da Fundação Open Society (do investidor George Soros), ambas sediadas nos EUA e com atuação em âmbito mundial, sobretudo nas regiões mais vulneráveis, e o foco em questões de pobreza, saúde, direitos humanos e educação. No Brasil não ocorre essa distinção. Aqui, a grande maioria das fundações privadas ou empresas executa os seus próprios programas sociais e/ou contrata ONGs para executar os projetos que elas idealizam. Como exemplos, temos a Fundação Bradesco, a Fundação Roberto Marinho, a Fundação Vale e a Fundação Itaú Social.

Todavia, é nos EUA, país em que mais se avançou no campo da filantropia, que começam a ganhar força as críticas à atuação dos filantropos.

A principal crítica diz respeito à lógica de funcionamento das fundações privadas, sejam elas corporativas, sejam familiares. Grande parte dos seus recursos financeiros provém de incentivos fiscais, isto é, são recursos que por direito seriam dos governos e que são repassados para que os filantropos ou suas organizações filantrópicas possam destiná-los às causas sociais que eles julguem meritórias. Dessa forma, ao terem as suas bases tributárias encolhidas, os governos democraticamente eleitos, que, em condições normais, teriam legitimidade para definir as prioridades sociais, acabam perdendo poder de decisão para a filantropia. Em outras palavras, são os governos cedendo espaço para os donos do poder econômico decidirem sobre as políticas públicas.

Voltando aos exemplos das duas maiores fundações privadas norte-americanas citadas, veja que a Fundação Bill & Melinda Gates decidiu investir pesado em países pobres da África no combate à malária, síndrome da imunodeficiência humana (Aids), poliomielite e tuberculose, que ainda continuam matando milhões de pessoas nesses locais. Por sua vez, a Open Society apoia pelo mundo afora as causas relacionadas a direitos humanos e, particularmente na América Latina, as questões vinculadas a desarmamento, descriminalização das drogas, apoio aos dependentes químicos e às minorias, bem como redução da maioridade penal. Seriam, de fato, essas as prioridades dos governos dos países receptores dessas ações e também do governo dos EUA, que em última instância é cofinanciador? Ou, levando o raciocínio ao extremo, a filantropia não acabaria se tornando um fator de ampliação de desigualdade entre os ricos filantropos e os cidadãos comuns em seu poder de influenciar as políticas públicas?

Outra forte crítica decorre da vinculação da filantropia com a lógica empresarial – dinâmica essa que Porter e Kramer denominaram inicialmente de filantropia estratégia (2002) e depois de valor compartilhado (2006). Já Matthew Bishop a chamou de filantrocapitalismo (2008). A alegação é a de que nesses casos fazer o bem fica sempre a reboque dos interesses do negócio. Ou seja, o investimento social é feito sob medida para atender de maneira prioritária aos objetivos corporativos e aos dos seus parceiros e, em segundo lugar, aos objetivos sociais das comunidades que são o foco das ações. No exemplo da Fundação Bill & Melinda Gates, os críticos dizem que o foco central de sua atuação social nos países da África está em expandir as fronteiras para os seus negócios de tecnologia da informação (TI) e das empresas acionistas da fundação, como, por exemplo, as multinacionais do setor farmacêutico e do setor de alimentos (McDonald’s e Coca-Cola), conforme artigo 1.

Particularmente, discordo dessa última crítica. Não pode ser tido como pecado a filantropia gerar também retorno econômico para os negócios dos seus financiadores. Ao contrário, essa vinculação valor social/valor econômico é saudável e pode representar fator de continuidade e fortalecimento das iniciativas filantrópicas. Porém o pré-requisito crucial para garantir essa vinculação saudável é que tais iniciativas sociais produzam, de fato, os resultados sociais prometidos. Ou seja, é preciso que haja o compromisso real entre o que a filantropia diz que vai fazer e o que é feito.

Daí porque, nesse contexto da filantropia em expansão, a avaliação dos resultados sociais se torna um instrumento imprescindível. Agora há cada vez mais parceiros (entre eles, o próprio governo) e recursos envolvidos e, portanto, se devem prestar contas do valor social gerado. Vale lembrar que antes a filantropia era constituída basicamente por uma série de ações isoladas de benemerência: tinha o poder restrito de influenciar e não precisava ser avaliada. Contudo hoje o cenário é outro. A filantropia tem um poder muito maior de influenciar o contexto social, porque atua em rede (a busca do impacto coletivo) e em parceria com os governos, as empresas e as famílias doadoras.

Estimular a Filantropia no Brasil?

Como visto, a filantropia ainda não é um valor cultural no Brasil, como ocorre nos EUA e no Reino Unido, mas pode haver espaço para fortalecê-la entre nós, por meio de política fiscal e campanhas de mobilização.

A legislação tributária em nosso país ainda é tímida nesse sentido e não favorece as doações filantrópicas incentivadas. Se as deduções do imposto de renda fossem maiores, os indivíduos e as empresas tenderiam a doar mais para as organizações sociais. Se houvesse maior taxação sobre heranças, isso poderia estimular, por exemplo, a constituição de fundações e institutos privados. Porém fica aqui o alerta de que essa segunda alternativa relacionada ao imposto sobre heranças deve ser vista com bastante cautela, uma vez que a carga tributária no Brasil já é uma das mais elevadas no mundo.

Quanto à mobilização da opinião pública em prol da filantropia, pode-se dizer que ela é quase inexistente no Brasil. Pouco se ouve falar de alternativas disponíveis para quem quer fazer o bem, por meio de trabalho voluntário e/ou da doação em dinheiro. Também quase não há hoje em dia a busca de sensibilização para os benefícios da filantropia, seja em termos do sentimento gratificante para quem ajuda, seja dos efeitos positivos na vida de quem é ajudado. Assim, se existissem campanhas de mobilização pensando nisso, muito provavelmente a filantropia baseada em recursos próprios (de tempo e/ou de dinheiro), para além dos incentivados, assumiria um novo patamar no Brasil.

Mas será que queremos mesmo estimular a filantropia no Brasil? Se sim, precisamos estar conscientes de que, quando a filantropia se expande, como se deu nos EUA, e adquire novo formato (a ideia do valor compartilhado ou do filantrocapitalismo), ela também passa a apresentar riscos que antes não existiam. Como visto, um desses riscos é a ampliação do poder político dos filantropos vis-à-vis aos governos e cidadãos comuns. Outro risco é o fortalecimento econômico dos filantropos e seus negócios em descompasso com a transformação social que eles produzem.

Se queremos mesmo estimular a filantropia no Brasil, temos de estar preparados para lidar com riscos/questões desse tipo. A melhor maneira para isso é agir de forma firme no campo da regulação da filantropia, isto é, delimitar de modo claro os espaços e papéis que desejamos que a filantropia ocupe em nosso país. Prever antes, para evitar conflitos e retrocessos no futuro. Assim, entre outros, é importante contemplar os seguintes aspectos:

  • definição do marco institucional, com a atribuição das responsabilidades e formas de interação entre as diferentes instituições do terceiro setor, do setor público e do setor privado;
  • definição dos critérios para a eleição pelos filantropos das causas sociais que querem apoiar, de modo a coibir interesses individuais em detrimento do bem comum;
  • normas para a condução das ações sociais, sempre baseadas no respeito e na escuta às necessidades das comunidades atendidas;
  • compromisso com a avaliação dos resultados sociais e transparência.

Por que devemos estimular a filantropia no Brasil? Será que ela pode ser tida como superior ao Estado na promoção do bem público?

A meu ver, não está em questão se a filantropia é superior ao Estado na promoção do bem público. Há papéis que são específicos do Estado, como aqueles relativos à segurança e à justiça, e papéis que podem ser compartilhados entre organizações públicas e filantrópicas, como nas áreas da saúde e educação. E, nesse segundo caso, tanto podemos ter instituições públicas como filantrópicas que sejam efetivas ou não. Vai depender sobretudo das práticas de gestão adotadas por cada instituição individualmente.

O importante é podermos vir a ter no Brasil a filantropia como complementar ao setor público, capaz de somar forças para a promoção do bem público. Nem de longe está em jogo apenas subtrair recursos dos governos, via incentivos fiscais, e realocá-los nas instituições filantrópicas. Não é para ser uma conta de soma zero, em que se busca reduzir o poder de atuação do Estado na mesma proporção em que se amplia o poder da filantropia.

Concluindo, e após feitos esses alertas, considero que devemos, sim, estimular a filantropia no Brasil, haja vista o seu potencial positivo na promoção do bem público. Primeiramente, por representar uma oportunidade de canalizar novos recursos (além dos públicos), seja por meio de doações em dinheiro, seja mediante trabalho voluntário, para enfrentar os muitos problemas sociais existentes em nosso país. Em segundo lugar, por representar uma maneira diferenciada de tratar as questões sociais, com menos burocracia e mais competência para atuar com foco em resultados. E terceiro, por não estar atrelada a ciclos eleitorais curtos e, portanto, por poder se comprometer com um horizonte de trabalho de mais longo prazo.

1 http://pijamasurf.com/2014/01/el-filantrocapitalismo-de-bono-y-bill-gates-ayuda-a-los-pobres-que-beneficia-mas-a-los-ricos/

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