As relações de trabalho da Igreja

Por: Marcos Biasioli
01 Janeiro 2011 - 00h00

Dentro do ordenamento jurídico pátrio, a Igreja não é tida como associação, tampouco como fundação ou sociedade. Com o advento da lei nº 10.825/03, que alterou o artigo 44 do Código Civil, a Igreja passou a ocupar uma nova classificação: a de organização religiosa, dada a sua especificidade, que difere substancialmente das outras pessoas jurídicas, em especial no que diz respeito às relações com a mão de obra.

É tênue a linha que separa o trabalho religioso do trabalho civil, pois o marco inicial para essa distinção está preso, especialmente, à soma de dois ingredientes: (i) o animus contrahendi, isto é, a intenção de contratar das partes; (ii) a missão verdadeiramente religiosa da Igreja. Em outras palavras, o empregado, quando procura um trabalho, visa a uma contrapartida, que é a remuneração; já a empregadora busca a tomada do serviço mediante o custo do salário.
Quando procura a Igreja, o religioso busca a comunhão com Deus e outros ideais que não o salário, ainda que haja o financiamento do seu mister religioso; e a Igreja, quando agrega um religioso ao rol dos seus membros, busca alguém vocacionado para dar seguimento ao legado de Cristo, difundindo o seu ensinamento.

Qualquer desvio de finalidade de uma das partes pode causar uma confusão na relação. A Igreja não pode traduzir em lucro a palavra de Deus, pois, se assim o fizer, estará mais para uma sociedade de fato do que para uma organização religiosa, o que dá ensejo ao religioso pugnar por relação de emprego, cuja reivindicação tem sido acolhida por nossos tribunais: “... Apenas no caso de desvirtuamento da própria instituição religiosa, buscando lucrar com a palavra de Deus, é que se poderia enquadrar a igreja evangélica como empresa e o pastor como empregado”1.

No entanto, o trabalho do religioso não se resume tão somente ao trabalho eclesiástico, pois pode ser destacado a cuidar das finanças da ordem, do patrimônio, da relação de pessoal etc., o que não desnatura sua missão como religioso nem viola a natureza de sua admissão na vida consagrada. A teoria do jus variandi, ou seja, aquela que outorga o direito ao empregador de variar a função do empregado sem que isso represente mudança no seu contrato, também se aplica à Igreja, que pode variar a missão do religioso desde que seja para o fim e missão primeira, que é a profusão da fé.
A Igreja erigida sem ligação com nenhuma ordem, sem a construção de um rumo para o dogma, sem o estreitamento dos objetivos espirituais – e mais, que recolha o recurso do devoto – está sujeita a ser desmitificada mediante a proteção do Estado, com o reconhecimento do religioso como obreiro.

Por outro lado, o religioso que fez os votos professos de fé e renunciou bens efêmeros e a vida fora dos vínculos com a Igreja não pode, de repente, pugnar relação de emprego.

Assim, o corpo social de uma organização religiosa é composto por membros tipicamente eclesiásticos, os quais possuem direitos e deveres recíprocos com a organização. Os vocacionados, por sua vez, são o principal capital humano da organização, exercendo trabalho qualificado e especializado em benefício de sociedade particular e universal, com base fundamentalmente na dedicação integral à missão vocacional e institucional da mesma.

No seio da organização, seguem jornada tracejada por dedicação e lealdade total, o que vai além dos direitos previstos na legislação trabalhista, surgindo, então, o dever como forma de contrapartida, do sustento dos missionários.
Segundo Delaméa2, em sua obra Contabilidade Eclesiástica, o sustento do vocacionado é um dever da organização e não deve ensejar qualquer tipo de repreensão: “Esse honesto sustento presume garantias de sustento para toda a vida desses membros, o que significa, além dos custos cotidianos que recaem sobre as aziendas dessas entidades, a formação de um fundo para assegurar seu continuado sustento na idade avançada, ou na invalidez, tendo presente que se trata de pessoas que se doam por inteiro às respectivas entidades, à Igreja e ao bem comum da sociedade”.

Alice de Barros Monteiro3, em seu artigo sobre trabalho voluntário e trabalho religioso, conclui que: “[...] nos serviços religiosos prestados ao ente eclesiástico, não há interesses distintos ou opostos, capazes de configurar o contrato; as pessoas que os executam o fazem como membros da mesma comunidade, dando um testemunho de generosidade, em nome de sua fé. [...] Em consequência, quando o religioso, seja frei, padre, irmã ou freira, presta serviço por espírito de seita ou voto, ele desenvolve profissão evangélica à comunidade religiosa a que pertence, estando excluído do ordenamento jurídico-trabalhista, ou seja, não é empregado”.

Muito embora seja clara a ausência de direito trabalhista do vocacionado, exceto nos casos das Igrejas em que Deus é produto e não Santidade, é inteligente examinar também que a Igreja não está impedida de formalizar um contrato de cunho religioso e um de natureza genuinamente trabalhista com a mesma pessoa, pois a lei social veda a dualidade do contrato de trabalho, mas não aquele de natureza diversa. No entanto, é imprescindível que haja o preenchimento dos demais requisitos que ensejam a consumação da relação de trabalho, tais como: salário, subordinação, pessoalidade, animus, não eventualidade, pois assim nossos tribunais têm entendido: “A atividade de gravação de CDs em estúdios da igreja não se insere no espectro das funções eclesiásticas, razão pela qual, uma vez caracterizados os requisitos do art. 3º da CLT, não há obstáculo ao reconhecimento de vínculo de emprego entre o pastor e sua igreja no trabalho como músico.”4

Enfim, o animus contrahendi da Igreja e o do religioso deve ser uníssono, e o desvio de finalidade e transparência da relação por uma das partes nos remete à lembrança do magistério de São Lucas: “Não podeis servir simultaneamente a Deus e a Mamon. (S. LUCAS, cap. XVI, v. 13.)”.

1 TST, Processo: AIRR - 365200-63.2002.5.05.0900, 4ª Turma, DJ 09/05/2003.
2 Deleméa, Elenita. Contabilidade Eclesiástica. São Paulo: Loyola, 2001.
3 BARROS, Alice Monteiro de. Trabalho voluntário e trabalho religioso. Síntese Trabalhista. Porto Alegre, nº 130, p. 10, abr. 2000.
4 ACO 08298 - 2004 - TRT 9º Região - Relatora Juíza Sueli Gil El-Rafihi - Publicado no DJPR em 14/05/2005.

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