Antônio Ermírio de Moraes

Por: Aline Moura
01 Janeiro 2003 - 00h00
Antônio Ermírio de Moraes, 74 anos, é presidente de um dos maiores hospitais filantrópicos brasileiros, a Beneficência Portuguesa. Atua como voluntário e preside o local há 32 anos, transformando-o em referência para cirurgias do coração – 8.600 realizadas em 2002, 80% pagas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Doa seu bem mais precioso, o tempo, para administrar um hospital com 58 salas de cirurgias, 200 leitos de terapia intensiva e faturamento mensal de R$ 21 milhões. “Na minha posição, é muito mais fácil preencher um cheque do que doar meu tempo. Mas precisamos fazer as duas coisas”, ensina o incansável benemérito.

O empresário costuma dizer que, quando morrer, quer que as suas cinzas sejam enterradas no jardim do hospital, “para controlar a turma que está lá”. Com o mesmo pulso forte, dirige a Votorantin, empresa fundada em 1918 que se expandiu para os ramos da agroindústria, celulose e papel, cimentos, energia, finanças, metais e química, além de atuar no Exterior. Cerca de R$ 34 milhões foram gastos pela sua empresa em ações sociais, doações e patrocínios no ano de 2001. Em entrevista concedida à Revista Filantropia, Antônio Ermírio fala sobre a precária situação da saúde pública, a falta de solidariedade da elite brasileira e a solução para os problemas do país, a educação.

Filantropia: Quais as principais dificuldades enfrentadas hoje pelos hospitais filantrópicos?

Antônio Ermírio: Acho que a maior dificuldade é você receber. Se bem que, ultimamente, depois que o Barjas Negri entrou, os pagamentos estão fluindo bem regularmente. Mas, mesmo assim, pelo menos uma ou duas vezes por mês, você tem de ir para Brasília conversar com eles. Porque eles glosam os pagamentos. Fica difícil, eles já pagam pouco. Tivemos uma glosa na Beneficência de R$ 1.800 milhões. Depois de muita conversa, dividiram em seis prestações mensais de R$ 300 mil. Só a nossa folha de pagamento vai a R$ 8 milhões por mês. Tem de ficar muito atento a essa parte de recursos. Atualmente, atendemos 62% de pacientes SUS, o que nos enquadra perfeitamente bem em uma entidade filantrópica. E sinceramente nós não devemos um centavo sequer para quem quer que seja. Não devemos um centavo, nenhum, zero. E eu agradeço a Deus por isso.

Filantropia: Os hospitais se queixam que ultrapassam essa demanda de 60% e depois não recebem o repasse...

Antônio Ermírio: Aí é triste. Nós, sob esse aspecto, estamos mais equilibrados, atendemos 60, 62% de SUS e o resto é convênio e sócios. Mas às vezes o SUS sobe um pouco. Para você ter uma idéia, temos, no momento, bloqueado pela Secretaria de Saúde de São Paulo cerca de R$ 9 milhões. Na realidade, são R$ 20 milhões, mas desse total, R$ 11 milhões nós conseguimos por meio de Brasília e do Governo do Estado de São Paulo. É muita coisa, né? Esse é o principal problema. E tem de ter muito equilíbrio, porque senão a coisa desanda.

Eles dão uma cota, você a ultrapassa e eles bloqueiam. Como é que eu vou fazer com o paciente que chega lá, está mal e precisa de uma cirurgia? Não tem cota, volta para casa? Aí vem o Ministério Público, que recebe reclamações de pacientes que normalmente não tinham de reclamar de nada. Quando eu era moço, existia uma profissão chamada advogado de porta de cadeia. Hoje, é advogado de porta de hospital. Qualquer coisinha, eles fazem um alarido danado e tocam um processo enorme em cima de você.

Não vou citar nomes aqui, mas tivemos uma paciente com câncer no útero que foi operada. Ela ficou tão chocada que desistiu do emprego e pediu uma indenização de US$ 1 milhão para a Beneficência Portuguesa por danos morais. Agora, se tem câncer, você não opera e deixa morrer? É um negócio incrível, triste. O que me move e me faz trabalhar já há 32 anos no hospital é que eu sei que estou atendendo as classes menos favorecidas. Isso, para mim, é um estímulo. Estamos atendendo aquele povo que precisa, que bate de porta em porta e que não é atendido.

Filantropia: Mesmo com esses problemas de pagamento, a Beneficência sempre conseguiu atender a meta de 60% exigida por Lei, ao contrário de muitos hospitais filantrópicos. Qual o segredo dessa façanha?

Antônio Ermírio: Sou presidente e sei todos os pagamentos do hospital, todos. Nós faturamos R$ 21 milhões por mês e todo esse dinheiro passa pelas minhas mãos. Assinatura de cheque não é tudo, é metade do tempo que você gasta. Eu gasto pelo menos 12 horas por semana extras com a Beneficência. Saio da Votorantim às 18, 19 horas e vou para lá cumprir a minha obrigação. É preciso muita dedicação. Só isso. Saber como estão os equipamentos, fazer manutenção de tomografia computadorizada, da ressonância magnética, do ultra-som. Tem de fazer, senão quebra.

Nós temos 31 elevadores e gastamos mensalmente com a manutenção deles de R$ 10 a R$ 15 mil. Tudo isso tem de ser acompanhado de perto. Não adianta você ficar à distância, reclamando que não tem recurso. Diariamente, tem de ir pessoalmente conferir como está o caixa. A única vantagem da filantropia é que você não recolhe INSS da parte do empregador. Imposto de renda você paga normal. Tem de equilibrar as contas. Os pacientes, com muita razão, querem sempre os melhores equipamentos, os melhores médicos, os melhores cirurgiões, os melhores enfermeiros. No nosso caso, por exemplo, somos especializados em cirurgia do coração. Chegamos a fazer 816 cirurgias do coração no mês de agosto. No final do ano, totalizaram 8.600. Dessas, 80% é SUS. E 80% dos exames de cateterismo também (1.600 a 1.700 por mês).

Filantropia: Há quem defenda a redução do teto de 60% alegando até que ela é inconstitucional...

Antônio Ermírio: Eu não sou advogado, mas aqueles que queiram ter a filantropia correta têm de obedecer. O dia que mudar, tudo bem. Eu não vou fazer força para mudar, porque dá para viver. Eu não devo nenhum centavo para quem quer que seja, com a graça de Deus. Agora, tem de ter uma administração em cima.

Filantropia: Como o senhor avalia o governo de Lula frente à saúde pública filantrópica?

Antônio Ermírio: Pior do que está não pode ficar. Eu vou continuar indo uma vez por mês para Brasília e uma ou duas vezes à Secretaria de Saúde. Não quero nada. Quero apenas que eles paguem aquilo que é devido. Nós temos uma população muito pobre, que precisa de um tratamento assistencial decente. Todo dia tem problema, mas em face do que eu vejo nos outros hospitais, os nossos problemas são pequenos. Nós temos 200 leitos de terapia intensiva. Não precisa falar mais nada. Mas é complicado. No mundo inteiro, a questão da saúde é complicada. O Brasil gasta cerca de 5% do PIB com saúde, enquanto os Estados Unidos investem 14%, o extremo. Eles gastam muito e assim mesmo a saúde lá não está grande coisa.

Países como a França, Alemanha, Inglaterra e Itália gastam em torno de 7% em saúde. Mas é que nós temos muita gente pobre no nosso país. Muita gente que não tem como ser atendida. E eu não gosto de favor de governo. Tem de trabalhar, vencer e mostrar sua competência. O governo é muito grande, o Brasil é um país muito grande. Se fosse uma Suíça, mas um país desse tamanho. Não é fácil. Fácil é querer só culpar o governo. A democracia é uma coisa difícil. O caminho mais longo entre dois pontos é a democracia. Mas, como nossa vida é curta, você não pode arranjar tudo no curto espaço de tempo. Agora, se você se preocupa com uma administração boa ao longo de duas, três gerações, a coisa vai embora. Entretanto, tem muita gente que não gosta. E é mais fácil reclamar do que fazer, né?

Filantropia: E qual a responsabilidade do empresariado em relação à tamanha pobreza? O senhor acredita em um processo de mudança na mentalidade do brasileiro em relação à responsabilidade social individual? As pessoas hoje têm mais consciência em relação ao consumo responsável?

Antônio Ermírio: Há uma deficiência nesse sentido. Nossa elite normalmente se incomoda muito pouco. Não quero dizer que sejam todos. Há muita exceção, mas de uma maneira geral ela não se incomoda. E digo mais: na minha posição, é muito mais fácil preencher um cheque do que doar meu tempo. Mas precisamos fazer as duas coisas. Preencher um cheque e dar seu tempo na administração de um hospital, por exemplo. Esse binômio é essencial. Eu sou engenheiro, não sou médico, mas tenho de dar duro em cima de novos equipamentos médicos, corrigir as falhas, porque as falhas existem em um hospital tão grande. Não posso falar pelos outros.

Na minha família, procurei fazer com que cada um fizesse um pouco no sentido de melhorar a vida dos mais necessitados. Isso é educação. Meu pai, por exemplo, foi presidente da Cruz da Vermelha da Beneficência. Meu irmão foi presidente do Hospital do Câncer, daqui de São Paulo. Eu estou há 32 anos na Beneficência Portuguesa, quatro anos de Cruz Vermelha e mais quatro anos de Cruz Verde. Temos de que fazer nossa parte. Agora, a nossa elite é meio relaxada. É uma elite egoísta. De burra não tem nada, eles são bem inteligentes, mais do que eu.

O Brasil, porém, é um país rico de gente pobre. Há um certo exagero, por exemplo, nesse negócio de fome zero. Eu conheço bem o interior do Ceará, o interior de Pernambuco. Existe um pouco de fome lá, mas não é isso tudo. O brasileiro, em média, consome 60 quilos de carne por ano per capita. O mundo inteiro come 38 quilos de carne e nós, 60. O Brasil produz mais de um bilhão de toneladas de grão, o que dá 300 quilos per capita. Para aonde é que vai nossa comida? Eu escrevo na Folha todos os domingos. Já escrevi uns dez artigos sobre isso. Quero saber para aonde é que vai a comida. Há uma coisa errada nisso tudo, que precisa ser desvendada.

Há um grande desperdício. Basta ir à uma feira ou ao Ceasa às 5 horas para ver que coisa terrível, que desperdício total. É uma questão de saber aproveitar, mas acho que tem muito faturamento em causa própria. Só pode ser. Eu não quero acusar ninguém, seria uma injustiça brutal, mas não dá para entender. Onde é que vão parar nossos alimentos? As estatísticas são todas favoráveis ao Brasil, que é um país de Primeiro Mundo em matéria de comida. No entanto, tem gente passando fome. O Brasil ainda continua sendo um país rico de gente pobre. Em 1986, quando disputei o Governo do Estado de São Paulo, andei muito por essa periferia todinha. E existe muita gente que se sacrifica pelo próximo. Gente que não tem nada. Já a elite é “venha a nós o vosso reino”.

Filantropia: Existe uma nova ferramenta no mercado, a Solução Integrada para Gerenciamento da Gratuidade da Atividade Social (Sigrats), que promete ofertar aos dirigentes hospitalares a possibilidade de gerenciar pela Internet, em qualquer lugar do mundo e em tempo real, toda a atividade de benemerência. Considerando que a maioria dos dirigentes, a exemplo do senhor, são voluntários, acredita que tal ferramenta poderá facilitar a gestão à distância e fortalecer a credibilidade das obras sociais com a conseqüente conquista de mais doadores?

Antônio Ermírio: Tudo bem, aceito, mas quero fazer apenas uma observação: é muito mais fácil falar do que fazer, né? Se eu não der o exemplo de ficar aqui até essas horas... Escrever é fácil. E depois, o meu final de semana do Guarujá eu não vou dispensar! Acho que dedicar boa parte do tempo para as pessoas menos favorecidas é obrigação de todo cidadão. Minha filosofia é essa. Esse negócio todo é muito bonitinho, via Internet, mas entre o que está escrito e a realidade, nem sempre a coisa coincide.

Nós precisamos de boa vontade. E quem é que vai ter boa vontade? Há problemas sérios, problemas de pagamento de funcionário. Se nós atendemos SUS e temos um faturamento menor do que um hospital que trata só de convênio, evidente que quem trata só de convênio deveria ter gente de melhor gabarito. Mas isso não acontece, não. Na prática, isso não está acontecendo. E a dedicação do nosso pessoal para com os pacientes, tenho certeza, é melhor que os chamados setores especiais dos hospitais.

O que nós estamos pagando para nossos empregados é menos do que paga um Albert Einstein, é menos que um Oswaldo Cruz ou um Sírio Libanês. No entanto, o meu raciocínio é o seguinte: fico boquiaberto porque realmente há um carinho muito grande do pessoal que trabalha no nosso hospital com os pacientes, porque há uma identidade entre a posição financeira deles e a posição financeira dos pacientes SUS. Então, eles tratam os doentes com todo carinho, é uma coisa curiosa. Eu acho que é por aí, eu posso estar enganado, mas minha opinião é essa.

Filantropia: Como o senhor concilia as atividades de empresariado e de benemerência? Sobra tempo para vida pessoal? Há sacrifício?

Antônio Ermírio: Não é um sacrifício, é o que me move, porque estou achando que estou sendo útil. Eu não sou um sujeito que menospreza aqueles que não têm recurso. Eu não sei, tenho um sentimento interno que me diz que tenho de ajudar os menos favorecidos. Tomei posse dia 7 de abril de 1971 na Beneficência Portuguesa. A primeira medida que veio para mim foi acabar com o convênio do Inamps (sistema público de saúde da época). Eu disse: ‘olha, não concordo. Se por acaso eu for voto vencido, vai ser a primeira e última reunião de diretoria que presido’.

Estou aqui para ajudar aquela classe menos favorecida. Sem nenhuma demagogia, está aí a prova. Podemos errar, ninguém é perfeito. Mas de maneira geral acho que o trabalho é satisfatório. Às vezes, a pessoa tem muito boa cabeça, mas não tem recurso. Inteligência não é privilégio de rico ou de pobre. Você tem de procurar arranjar um meio termo para todo mundo. Outro dia fiz uma contabilidade e eu tenho 25 mil horas de trabalho só na área hospitalar. Tudo bem que eu já tenho 74 anos, está na hora de ir embora (risos). Tenho 74 anos e, até os 70, trabalhava 70 horas por semana. Agora que eu estou vagabundo, trabalho 60. Não tem outra solução. Já disse que o dia que morrer, quero ser cremado e as cinzas jogadas lá no jardim da Beneficência, só para controlar a turma que está lá.

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