A cor da discriminação

Por: Revista Filantropia
01 Março 2004 - 00h00
Pesquisa mostra diminuição do racismo no Brasil. Mas o movimento negro aponta maior urgência na implementação de políticas que acabem com a desigualdade entre negros e brancos

A diminuição do preconceito pode ser fruto de mudanças de comportamento por parte da mídia e do mercado, e da intervenção dos movimentos negros e de mulheres

Dia 3 de fevereiro de 2004, São Paulo, Brasil. Um homem é abordado por cinco policiais militares e um comerciante que procuram um assaltante. Durante a ação, ele acaba sendo morto com dois tiros. Porém, depois de ver o corpo, o comerciante reconhece o erro. Não se tratava do tal ladrão. Era um dentista recém-formado, que mal teve chance de defesa. Chamava-se Flávio Ferreira Sant’Ana, tinha 28 anos e era negro.

Este crime que revoltou o país trouxe à tona dois fatos freqüentes há anos, que merecem atenção urgente e mais séria do setor público. O primeiro é a barbárie no número de assassinatos deliberados a suspeitos cometidos por policiais, principalmente militares. O outro é a arbitrariedade com que eles abordam pessoas negras como se todas fossem marginais. Ou seja, um indício claro das condições preconceituosas em que vivem negros e negras no Brasil.

Mais que isso, o assassinato do dentista mostra outro agravante: o total descaso dos policiais com a vida humana e a ética na tentativa de forjar provas contra o rapaz, deixando junto ao corpo a carteira de Antônio Alves dos Anjos – o comerciante assaltado – e uma arma.

Com o resultado da perícia e a mudança no depoimento de Alves, a farsa foi descoberta e os policiais foram presos, incluindo um sexto membro que ameaçou o comerciante para que confirmasse a dissimulação.

Inconformado, o pai de Flávio já alertava sobre a possibilidade de crime de racismo quando foi visitado pelo comandante-geral da PM, o coronel Alberto Silveira Rodrigues. Na ocasião, Jonas Sant’Ana, policial militar da reserva disse que os policiais certamente não teriam atirado no filho se ele fosse branco.

Tal suspeita ainda foi fortalecida com a afirmação do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, de que haveria evidências de preconceito racial na morte do rapaz. O caso ainda está sendo averiguado.

Em Brasília, outra ocorrência de racismo veio a público com os constrangimentos sofridos em um restaurante por seis mulheres negras representantes de governos e ONGs – entre elas uma ministra de Moçambique.

“Episódios inadmissíveis como esses ilustram o que enfrentam diariamente negros e negras vítimas do preconceito e da discriminação racial em todo o país”, declarou Jorge Werthein, representante da Unesco no Brasil, em nota de repúdio.

Pesquisa comprova discriminação

Com o intuito de investigar mais a fundo essa temática, a Fundação Perseu Abramo, em parceria com o Instituto Rosa Luxemburgo, da Alemanha, realizou a pesquisa “Discriminação Racial e Preconceito de Cor no Brasil”, feita com 5.003 pessoas com mais de 16 anos de idade.

Ela revela, por exemplo, que 51% dos negros declararam já ter sofrido discriminação por parte da polícia. Entre as pessoas que se declararam da cor branca, esse número cai para 15%.

A avaliação foi feita em 266 municípios, incluindo todas as capitais, áreas urbanas e rurais, e 834 setores censitários, abordando quesitos institucionais como polícia, escola, trabalho, saúde e lazer, sendo que o índice de discriminação por parte da polícia é o maior de todos.

Das pessoas que se sentiram discriminadas (brancos, negros, pardos e indígenas), 69% acusam a Polícia Militar e 23% a Polícia Civil. A cor de quem discriminou, na média da pesquisa, é de brancos (62%), sendo que 78% dos negros foram discriminados por brancos e 12% dos brancos se sentiram discriminados por policiais negros.

Os estudos mostram ainda que o local apontado como principal ponto de discriminação são as ruas (60%). A grande maioria dos brasileiros não toma medidas para punir as discriminações sofridas (78%).

A segunda instituição de maior discriminação dos negros é o trabalho (18%), enquanto a educação tem um índice de 14%. Quando o assunto é lazer, os brancos sofrem menos de um quarto de discriminação em relação aos negros (2% e 9% respectivamente). Já na saúde, os brancos sofrem 1% de discriminação e os negros, 6%.

Apesar da pesquisa apontar aumento no número de pessoas que dizem não ter preconceito racial (de 88%, em 1995, para 96%, em 2003), ainda é alta a porcentagem de quem manifesta alguma posição racista, ou seja, 74%.

O coordenador da pesquisa, Gustavo Venturi, concorda que esse dado coloca em dúvida se houve uma mudança verdadeira na atitude das pessoas ou se apenas se trata de um discurso politicamente correto.

De qualquer forma, ele acredita que a diminuição do preconceito pode ser fruto de mudanças de comportamento por parte da mídia e do mercado, e da intervenção dos movimentos negros e de mulheres.

A participação de organizações sociais, por exemplo, é o que permitiu “a revisão das diretrizes educacionais do MEC, que passaram a explicitar que os livros didáticos não poderiam trazer conteúdos preconceituosos, submetendo-os, desde então, ao crivo de analistas comprometidos”, diz.

Ele também acredita que a retórica politicamente correta tem contribuído para coibir manifestações mais claras de racismo, mostrando que a sociedade está mais atenta e que as pessoas preconceituosas se sentem mais acuadas. “O preconceito se reproduz em escala menor quando há o cerco social”, afirma Venturi.

Políticas públicas precisam avançar

Apesar de os resultados parecerem satisfatórios, os grupos que lutam pela erradicação da discriminação racial no Brasil acreditam que ainda há muito que fazer.

Isso ficou claro durante as manifestações realizadas em 21 de março, Dia Internacional de Luta contra Discriminação Racial. Em São Paulo, por exemplo, cerca de 2.500 pessoas participaram de uma marcha contra a impunidade, a violência policial e o racismo, lembrando a morte do dentista negro. Organizada pela Frente Parlamentar pela Igualdade Racial da Assembléia Legislativa de São Paulo, a passeata foi finalizada com a entrega de uma carta ao Comando Geral da Polícia Militar exigindo medidas de proteção contra práticas racistas. O documento também pedia a implementação do que se confiram hoje as chamadas ações afirmativas. Entre elas, dois projetos de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS): um que prevê pena mais dura para crimes de racismo, e outro que disciplina a prática da revista pessoal feita por policiais, ao obrigar a justificativa por escrito da suspeita.

Durante o ato, Hédio Silva Jr., presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP e especialista na legislação de combate ao racismo, citou outra proposta: a introdução de um curso de tutela penal da igualdade racial no currículo dos PMs, o que pode trazer mudanças significativas contra a violência racial cometida por policiais.

Desigualdade entre negros e brancos ainda é alta

Em 1965, nos Estados Unidos, o presidente Lyndon Johnson decretou que as empresas contratadas pelo Estado deveriam se empenhar para empregar negros. Essa medida foi tomada com base na idéia de que a desigualdade entre brancos e negros naquele país era tão alta que se fazia necessária a intervenção do governo.

Esse é um exemplo do que se convencionou chamar de ação afirmativa, que objetiva dar melhores oportunidades aos negros para estimular a igualdade com o branco.

No Brasil, as pesquisas novamente identificam enormes diferenças quando o assunto é raça.

Uma delas, feita pelo IBGE, baseada em informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2001 revela que a desigualdade por cor é mais forte do que aquela que distancia homens de mulheres.

Em relação ao rendimento, homens negros e pardos ganhavam, em 2001, 30% a menos que as mulheres brancas. No geral, a população ocupada negra e parda teve rendimento em torno de 50% em comparação com os brancos: os negros ganhavam em média 2,2 salários mínimos mensais; já a média para os brancos era de 4,5 mínimos.

Do total de pessoas que faziam parte do 1% mais rico da população, 88% eram de cor branca, enquanto entre os 10% mais pobres quase 70% se declararam de cor negra ou parda.

No ano passado, o economista Marcelo Paixão, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), divulgou análise que mostra que a taxa de pobreza entre negros é 48,99% mais alta que entre brancos nas áreas metropolitanas de São Paulo e do Rio de Janeiro.

Além disso, 44,4% dos negros, equivalente a 5 milhões de pessoas, estão abaixo da linha de pobreza nessas regiões.

Somente em São Paulo, os dados são ainda piores: 52,9% dos negros são pobres, isto é, vivem com menos de R$ 176,29 mensais. A taxa é de 30,9% para os brancos. Na região metropolitana do Rio de Janeiro, a pobreza afeta 42,3% dos negros e 23,5% dos brancos. São pessoas que vivem com menos de R$ 135,02.

Para obter tais resultados, ele usou dados do Censo 2000 feito pelo IBGE, tendo contabilizado como negros, ou afro-descendentes, a soma dos grupos que o IBGE classifica como negros e pardos.

Depois aplicou a metodologia mais usada no Brasil para definir pobreza, a do Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), que classifica como pobres 33,64% da população brasileira, cerca de 57 milhões de pessoas.

Com esses dados, a titular da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade, Matilde Ribeiro, reconheceu a concentração de pobreza entre negros e mulheres no Brasil e defendeu a utilização, em todas as políticas sociais, de mecanismos de combate à desigualdade racial. Um exemplo seria a existência de cotas, principalmente nas áreas de educação e trabalho.

Cotas para negros

A implementação de uma medida que prevê vagas em universidades para negros e afro-descendentes é uma das ações afirmativas que tem gerado polêmica no Brasil.

Atualmente, o ministro da Educação, Tarso Genro, está analisando a adoção dessa política nas universidades federais. Para tanto, o governo Lula deve criar uma medida provisória sobre o assunto, que também trata da possibilidade de tal ação ser alvo de ações na Justiça.

Segundo o ministro, o sistema de cotas só terá uma regulamentação clara e definitiva após os tribunais superiores fixarem jurisprudência – conjunto de decisões semelhantes tomadas pelo Judiciário – sobre o tema. A idéia é finalizar em outubro ou novembro uma proposta para ser encaminhada ao Congresso.

A reserva de um porcentual mínimo para as cotas será definida pela MP. Já as faculdades é que deverão decidir como preencher as vagas.

A Universidade de Brasília (UnB), por exemplo, pronunciou-se dizendo que vai reservar 20% de suas vagas para negros no vestibular de julho.

Na pesquisa feita pela Fundação Perseu Abramo, foi observado um crescimento de pessoas a favor das cotas. Segundo ela, o resultado passou de uma população que estava dividida (48% a favor e 49% contra, em 95) para uma população francamente favorável às cotas (59% a 36% em 2003). Já sobre as cotas no campo de trabalho, 52% são a favor e 40% contra.

“Os que defendem as cotas as vêem como alternativa para enfrentar as desigualdades de oportunidades entre brancos e negros. E os que argumentam em contrário afirmam que, por sermos iguais, todos devemos ter os mesmos direitos e os negros não têm de ser tratados de forma diferente”, conclui o coordenador da pesquisa.

Gustavo Venturi também diz que quem se mostra favorável às cotas sabe que essa diferença não vai se corrigir com políticas genéricas e universalistas como as que vigoram há 115 anos, desde a abolição da escravidão.

“De fato, mais de um século de igualdade formal não garantiu que chegássemos sequer a 5% de negros nas universidades, ou em postos de poder político e econômico, sendo que os afro-descendentes representam cerca de metade da população brasileira”, afirma.

Estatuto da Igualdade Racial

Outro projeto em andamento, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), elaborado sob a coordenação da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), deve reforçar o sistema de cotas. Além de estabelecer percentuais para contratação de negros nos órgãos públicos, o Estatuto da Igualdade Racial altera o Código Penal para assegurar uma punição mais dura para os crimes de racismo.

A novidade é que o documento prevê que atos racistas passarão a ser passíveis de punição por ação penal pública, ajuizada pelo Ministério Público e sem prazo para prescrição.

Hoje, apesar de considerado crime, o racismo tem prazo de apenas seis meses. Além disso, raramente o ofensor vai parar na cadeia, pois a ação está no âmbito do direito privado e só pode ser de iniciativa do ofendido.

O texto, que está sofrendo alterações, pretende ampliar a abrangência do Estatuto, passando a beneficiar não só afro-descendentes, mas “todos os grupos afetados por discriminação racial e demais formas de intolerância”.

O estatuto promove, entre outros pontos, políticas públicas de ação afirmativa, como cota mínima de 20% para a presença de negros nos cursos de graduação das universidades federais, contratos do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies) e no funcionalismo público de todos os níveis de governo. O critério para definição da afro-descendência é a autodeclaração. Para o Movimento Negro Unificado (MNU), ainda falta garantir orçamento para a implantação das políticas públicas propostas no Estatuto. As verbas viriam do Fundo de Reparação. Se aprovado, o Estatuto garantirá a presença de negros em 20% do elenco das produções televisivas, incluindo filmes, novelas, anúncios publicitários e demais programas.

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