Com quantas varas se faz uma comunidade?

Por: Felipe Mello, Roberto Ravagnani
01 Novembro 2006 - 00h00

Novembro foi um mês de descobertas. Tanto este ano como em muitos outros. Duvida? Das diversas datas comemorativas que esse mês acomoda entre seus 30 dias, quero recordar o Dia do Inventor, Dia do Cinema Brasileiro, Dia Nacional da Alfabetização, Dia  da Criatividade, Dia Nacional da Consciência Negra, Dia da Homeopatia e o Dia das Saudações.

Está sentindo falta de outras datas potencialmente importantes de novembro? Trata-se, neste caso, de uma questão de opção.  Afinal de contas, o que não é uma questão de opção? Há algum tempo li algo revelador: “a bem-aventurança não depende das  condições, e sim das decisões”.

Durante o 11º mês de 2006, a expedição do Canto Cidadão me permitiu conhecer em terras cearenses, na companhia de Roberto Ravagnani – que divide comigo a direção do empreendimento social –, uma iniciativa promotora de um agradável refocilamento. (Confesso que tartamudeei no momento de utilizar esta palavra. É a primeira vez que a registro em um texto escrito. Foi há pouco que a conheci, em um livro do professor Mario Sergio Cortella1. Quero reparti-la: refocilamento significa recuperação das energias perdidas, e tal entendimento vem do latim, pois o vocábulo focus (fogo) ganhou o diminutivo focilus (foguinho),  indicando esquentar, aquecer, e, por extensão, reanimar. Refocilar é, portanto, reaquecer e revigorar. Camões o usou em seu Os  lusíadas, dizendo: “Algum repouso, enfim, com que pudesse / refocilar a lassa humanidade”.)

O programa comunitário que conhecemos em Fortaleza chama-se Quatro Varas, sendo homônimo da comunidade onde está inserido, uma das cem que compõe a Favela do Pirambu – que possui uma história de violência e despejos –, na metrópole nordestina que é o maior celeiro mundial de humoristas. Contradição?

Na companhia de representantes da Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza, visitamos a organização para trocar experiências sobre protagonismo social, notadamente relacionadas à contribuição que o voluntariado organizado pode trazer para o atendimento das demandas comunitárias latentes.

Durante a visita, soubemos que o nome das ruas daquela comunidade evidencia a história de excluídos e de lutas: a rua do Avanço lembra que a luta deveria continuar e que a resistência deveria avançar; a rua do Grito era o local de onde partiam os alertas de “Lá vem a polícia. Vamos resistir” etc. Tendo em vista que a luta exige organização, as pessoas reunidas em assembléia batizaram a comunidade com o nome de Quatro Varas, com a seguinte justificativa: pressentindo a morte, um senhor muito pobre reúne seus quatro filhos e diz: “Vou morrer, e como não tenho nenhum bem material para legar como herança,
deixo-lhes uma importante mensagem”.

Em seguida, pede para que cada um lhe traga uma vara e, após uni-las, solicita que as quebrem. Nenhum deles consegue quebrar as varas unidas. “Pois bem”, conclui assertivamente o velho homem, “Esta é a mensagem que deixo: enquanto ficarem unidos como estas quatro varas, ninguém os destruirá”.

Crescimento de uma comunidade

Tudo começou com um Ateliê de Arte e Terapia, precursor do projeto Quatro Varas, criado há 17 anos para abrigar os filhos de alcoolistas. Pesquisa realizada na comunidade na favela de Pirambu detectou que, nos finais de semana, os adolescentes deixavam suas casas para fugir dos conflitos do alcoolismo de seus pais. Ficavam vulneráveis às drogas, ao abuso e à exploração sexual e às seitas religiosas.

Foi então, com base na pesquisa, construído um espaço para acolhê-los e estimular os dons individuais. Aos poucos, eles revelavam seu gosto pelo desenho e pintura, destacando a experiência de uma comunidade em face da violência. A experiência originou, inclusive, a publicação do livro Do sertão à favelada exclusão à inclusão.

Após a fase de implantação, foram ampliadas e diversificadas as ações comunitárias. Teve início um programa de terapia comunitária, instrumento de consolidação da identidade da comunidade, ameaçada pela dureza da vida cotidiana. Da aliança com a  Universidade Federal do Ceará, surgiu o Movimento Integrado de Saúde Mental, por meio do qual os diversos saberes são articulados a serviço das dinâmicas individuais, familiares e comunitárias. Esse movimento atua no sentido do desenvolvimento das diversas potencialidades: as crianças desenham, os raizeiros trabalham a terra e as mulheres fazem bordados à mão.

Também como resultado da integração com a universidade, surge o projeto de extensão Farmácia Viva e, no seu lastro, as atividades referentes ao Horto Medicinal e à Horta Comunitária. Com adubos orgânicos e água retirada com ajuda dos cata-ventos, o cultivo de plantas medicinais permite adaptar um conhecimento tradicional à nova realidade. A produção de chás, xaropes e ungüentos, além de favorecer a melhoria da saúde da própria comunidade, destinase à venda, o que propicia um reforço  do orçamento familiar.

A comunidade constrói ainda a Casa da Cura, onde os curandeiros acolhem as pessoas estressadas, vítimas de violência, com insônia ou que sofrem de problemas psicossomáticos. Terminadas as atividades escolares regulares, o grupo do Ateliê de Arte e Terapia realiza uma colônia de férias para abrigar as crianças, defendendo-as contra os perigos da rua.

Certa vez, a comunidade Quatro Varas recebeu a visita dos índios Tremembé para três dias de discussões sobre terapias comunitárias e reflexões sobre suas respectivas comunidades. Os índios ensinaram que: “uma aranha sem teia é como um índio sem terra, e como uma comunidade sem a teia da solidariedade”. Isso explica porque a comunidade Quatro Varas faz da teia da aranha seu símbolo maior. Esse contato com os índios deu ensejo à criação de mais um serviço, a Casa do Acolhimento, espaço reservado   para hospedar as pessoas de passagem ou em visita à comunidade e para abrigar os habitantes da favela que, em situação de crise, necessitam de uma atenção especial.

Consolidação de uma comunidade

Outra conquista importante foi a instalação de uma unidade básica de saúde ao lado da organização social, oferecendo aos cidadãos maior dignidade no acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS).

Imaginar que os problemas da comunidade Quatro Varas estão resolvidos e que seus moradores desfrutam de um estado da arte no que diz respeito à garantia universal dos direitos dos cidadãos, é quase um devaneio. Contudo, quem por lá passa sente algo diferente no ar, na terra e nos olhos das pessoas. A construção de uma identidade comunitária, que hoje em dia passa muito pela ONG de mesmo nome apresentada, reforça a crença de que é possível avançar.

E as datas comemorativas? Co-memorar, ou seja, lembrar junto. Atenção ao jogo de palavras: uma comunidade que “inventa” o “roteiro do seu filme” (tornando-se protagonista) com “criatividade”, “educação”, “consciência e tolerância à diversidade”, tudo em “doses homeopáticas”, certamente terá muito que saudar.

Terminei novembro refocilado. Terminarei 2006 refocilado. Agradeço sua companhia e paciência. Desejo o melhor refocilamento a você. Até 2007!

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