À espera de um milagre

Por: Felipe Mello
04 Agosto 2017 - 00h00

Apesar de já ter feito uma quantidade considerável de atividades físicas na manhã daquele dia, pedalando cerca de 10 quilômetros até uma reunião, decidiu transpirar mais um pouco na academia no início da noite. Parecia também estar em busca de algum tipo de redenção das complicações do dia. Nada radicalmente grave, apenas o suficiente para lhe causar um desconforto melancólico, uma quase tristeza, aquela sensação que faz com que os olhos se descolem da realidade por alguns instantes, entre uma tarefa e outra.

Fez uso da esteira por 35 minutos. Nos primeiros cinco, caminhou. Nos 24 seguintes, correu em velocidade digna de orgulho para um final de dia de uma vida já segunda metade. Nos últimos seis minutos, retornou ao ritmo de caminhada, torcendo para sentir brotar em si a sensação de bem-estar, que normalmente surge ao final dos exercícios. No entanto, a torcida foi inócua. O dia invadia a noite custando caro a passar. Nem o suor que pingava em abundância de sua testa tinha sido capaz de afastar aquela indigestão existencial.

Desceu da esteira, apanhou a mochila pesada, bebeu uns goles d'água e saiu da academia. Desamarrou a bicicleta da lixeira escutando, de canto de ouvido, um rapaz menor de idade pedindo um cigarro a uma mulher que acabara de acender o seu. Apesar de resmungar algum conselho vago e bronqueado, a mulher atendeu ao pedido do rapaz, que vendia cinco panos de prato por R$ 10.

Montado em sua bicicleta, pedalou até o mercado mais próximo. Entrou, pegou quatro garrafas long neck e um saquinho de biscoito salgado crocante com sabor azedinho de limão. Bebeu a primeira garrafa logo na fila do caixa. Colocou CPF na nota, não comprou sacolinha, não pegou a sua via, guardou as outras três garrafas e o saquinho na mochila e saiu. Viu que passava das nove e meia da noite. Estava cansado, amuado e já pensando no dia seguinte, quando acordaria às cinco da manhã para pegar um voo às 6h50. Antes de pegar a bicicleta que estava encostada à parede sob guarda do vigia, todavia, avistou um menino próximo à saída.

A postura da criança era de quem sabia que tinha de estar pronta para sair depressa. Prontidão aprendida a fórceps, como estratégia de transitar entre os nãos que saem das bocas daqueles que cuidam dos lugares e das coisas. No meio do caminho tinha um menino pequeno, bem pequeno, com cabelos raspados e discurso pronto no meio do caminho. Tio, sobrou moeda? Me dá uma moeda, tio?

Empurrou a bicicleta até a calçada, equilibrando-a pelo pedal no meio-fio. Como tinha prometido checar se havia sobrado moedas – apesar de ter pagado com cartão débito –, atrás dele estava o menino com discurso pronto e roupas apertadas. Não, disse ele, não havia moedas. O menino não esboçou nenhuma reação especial. Apenas continuou lá, olhando para ele e para o mundo, com o rosto franzido. Qual é o seu nome, menino?, ele perguntou.

É Felipe, disse o menino, olhando para o outro lado da rua, de onde vinha outro menino correndo. Você é meu xará, exclamou o adulto, completando que sempre achava estranho quando encontrava alguém com o mesmo nome que o seu. O menino riu bem economicamente. Esse é o meu amigo Nicolas, emendou. Ele não é seu xará.

Decidiu procurar na mochila algo para dar aos meninos. Não queria dar dinheiro. Não tinha moedas, mas tinha algumas notas. Preferiu entregar dois pacotinhos – daqueles que vêm com três bolachinhas pretensamente saudáveis – aos pequenos. Ambos agradeceram. Ao fechar a mochila, decidiu pegar mais uma garrafa de cerveja e se sentar para beber. Esta é só para mim, disse às crianças, que em ato contínuo se sentaram ao lado dele.

Vocês vão à escola? Eu vou, disse o Nicolas. Eu não, disse o xará. E por que não? Minha mãe não conseguiu vaga. O menino por volta de 8 ou 9 anos, quase às dez da noite, certamente longe de sua casa, não ia à escola. Enredo tristemente repetitivo.

Meu joelho está doendo, disse ele aos dois. Por que, tio? Porque eu fiz uma cirurgia e ainda dói quando eu corro. Você é jogador de futebol, tio? Que nada. Sou apenas desajeitado com o corpo, e daí ele machuca às vezes. Ah, tá, tio. Ele ficou com vontade de dizer às crianças que às vezes a alma machuca também, quando somos desajeitados e até mesmo quando não somos. Mas isso os pequenos deviam saber por vida vivida, ou seja, que o mundo e as pessoas são cheias de desajeitos.

Uma mulher chegou com um bebê no colo. O Nicolas se levantou e disse que ela era a mãe dele. O xará também se levantou e disse que a mãe dele estava pedindo dinheiro na outra rua. É porque ela acha que o segurança daqui é bravo, tio. E não é?, perguntou a mulher. É nada, tia. Ele falou de boa para eu sair lá de dentro. Ah, suave, então amanhã a gente volta para pedir aqui, disse ela, e completou perguntando a ele, que ainda bebia a cerveja, como se chamava o mercado. Ele, querendo ser didático, respondeu que o nome era francês. E você sabe falar francês, tio?, perguntou o xará. Sei não, respondeu ele. Mas dá para entender que tem Santo no nome.

Santo?, repetiu alto a mulher. E completou: que bom, quem sabe pelo menos ele olha para nós. E disse aos meninos: ali ó, tem gente saindo. Vão logo pedir que a gente ainda tem que trabalhar muito hoje.

Ele bebeu o último gole da cerveja. Estava, ou tinha acabado de ficar, mais amarga que o normal. Despediu-se da turma e pedalou ladeira acima, pensando na criança de mesmo nome, mas de vida tão distinta, adestrada para a mendicância, à espera de um milagre.

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