As roupas que não servem mais

Por: Felipe Mello, Roberto Ravagnani
01 Novembro 2009 - 00h00

Algo comum entre os viventes é acordar e se vestir, especialmente para frequentar o espaço coletivo. Abertura de olhos, espreguiçamento, lavagem de rosto e dentes e visita ao armário. Pronto. Corpos vestidos, mentes nuas, recorrentemente nuas no tecido das ideias. A repetição é a atual palavra de ordem, na profissão, na vida pessoal e na sociedade. Mais do mesmo. O ponto não é demonizar levianamente a rotina, que pode gerar momentos valiosos de serenidade, mas reconhecer a armadilha que conduz à perda da capacidade de criar, pela falta de recreação.

“Viver não é preciso, criar é preciso”. Fernando Pessoa Aquele que dizia que um charuto às vezes é apenas um charuto lançou também uma proposta em relação ao ato da criação. Dizia Freud que a “ideia é a ação ensaiando”. Em tempos de anestesia coletiva, o agir protagonista é ingrediente central de transformação, a partir da provocação que vem das ideias. Quando esse campo deixa de florescer, torna-se concreto, terminando em mais do mesmo. Ruim para a sociedade – que não se envolve e não propõe, vivendo de reclames –, ruim para as empresas – que dependem do capital humano para inovar e se manterem competitivas –, ruim para as relações pessoais – que carecem de ideias que afastem a rotina modorrenta. A avalanche de fardos pesa sobre as costas castigadas do indivíduo, que está na interseção de tudo.

“Triste não é mudar de ideia; triste é não ter ideia para mudar”. Francis Bacon Em Estocolmo, Suécia, aconteceu um experimento pouco acadêmico, mas muito perspicaz e revelador. O desafio da companhia de trens era fazer com que as pessoas usassem mais as escadas normais do que as rolantes. Afinal, estas gastam mais energia e não estimulam a atividade física, além de provocar momentos de tumulto. Decidiram, então, tornar as escadas normais mais divertidas. Eureca! Durante a noite, prepararam os degraus como se fossem teclas de piano, com sensores e alto-falantes. Cada vez que alguém pisasse um degrau, o som da “tecla” soaria. O dia amanheceu e os transeuntes suecos começaram a reconhecer na proposta algo valioso. Uma quantidade 66% maior de usuários havia utilizado as escadas normais para subir ou descer. Quantas experiências divertidas fazem parte das escaladas nossas de cada dia?

“Se no início a ideia não parecer absurda, não há esperanças para ela”.Albert Einstein Se o leão é o rei da floresta, o ser humano é o rei da justificativa. Possível resultado da caminhada evolutiva, a farta distribuição de desculpas é esporte universal. Quase todos são capazes de enumerar argumentos que expliquem a tirania da repetição em vez da libertação pela criação. Compreender as razões é humano, desafiá-las é divino e necessário. O passo inicial é reconhecer que a criação é um músculo que se atrofia a partir do final da infância e segue esse rumo de adulteração enquanto o indivíduo se torna um adulto. No livro Ponto de ruptura e transformação, George Land apresenta os resultados de testes realizados com um grupo de 1,6 mil jovens nos Estados Unidos. No primeiro teste, as crianças tinham entre 3 e 5 anos, e 98% apresentaram alta criatividade; o mesmo grupo foi testado aos 10 anos, e o percentual caiu para 30%; aos 15 anos, somente 12% mantiveram um alto índice de criatividade. Teste similar foi aplicado a mais de 20 mil adultos, e somente 2% se mostraram altamente criativos. O desenvolvimento da criatividade requer coragem para abandonar a zona de conforto desconfortável e escapar da caverna de Platão, rompendo as correntes que impedem o pleno uso de nossa capacidade mental.

“Cheguem até a borda, ele disse. Eles responderam: temos medo. Cheguem até a borda, ele repetiu. Eles chegaram. Ele os empurrou… e eles voaram”. Guillaume Apollinaire Mora no ser humano, além do potencial para a repetição que enferruja, uma transgressora lente que reconhece beleza e nutrientes criativos. A lente do olhar generoso, sinônimo de bagagem leve na alma, permite descobrir cenas cotidianamente poéticas. Ela vem pela decisão de encontrar beleza nos recônditos da vida, pequenos encontros relacionais, sorrisos breves e sem jeito, olhares agradecidos, músicas que combinam com o momento, cheiros e sabores que afagam o corpo físico, carinhos simples, textos bonitos e vento na cara. Tudo tão disponível, diariamente. Quando provarem – no Dia de São Nunca – que o pessimismo e a visão pobre do rancor e do desamor ajudam a suplantar os degraus, pense em aposentar a lente. Por enquanto, não. Que tal deixar para trás as roupas que não servem mais e liberar espaço para a criação recreativa? Até porque, como lembra Adélia Prado, “só pode com a tristeza quem não perdeu a alegria”.

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