A Constituição Federal dá plena liberdade à criação de uma associação para fins legais, não lucrativos, vedando a interferência do Estado. Nesse processo, o artigo 44 do novo Código Civil Brasileiro enquadra as pessoas jurídicas sem fins lucrativos como associações (em regra, nasce sem capital) ou fundações (obrigatoriamente, nasce com capital), em entes de direito privado. Seja a entidade uma associação ou fundação, ambas as formatações são constituídas para o desenvolvimento de um determinado fim, não econômico, visando atender a um grupo. Para tanto, torna-se preponderante, e atualmente obrigatória, a descrição de seus fins, que podem priorizar o assistencialismo, a tutela ao meio ambiente, a cultura, a pesquisa, ao ensino, a saúde, ao lazer, ao esporte, ao acervo histórico, e muito mais. Ressalvadas as fundações, que, por determinação do art. 62, do novo Código Civil, somente podem ser constituídas para os fins religiosos, morais, culturais e de assistência. Não obstante os fins de sua criação, geralmente terem sido direcionados ao interesse público, não há como retirar delas, o caráter privado de sua existência, dentro do âmbito do direito civil. Muito embora se defenda que o caráter privado e associativo impõe uma blindagem à interferência do Estado, ela não é tão intransponível como parece, conforme aprofundaremos o estudo abaixo.
Autonomia e independência
da instituição
Partindo do pressuposto que a instituição agirá por sua conta e risco na produção dos seus fins, ou seja, de forma autônoma e dissociada dos recursos públicos, ela terá a plena liberdade de ação sem qualquer interferência do Estado, respeitados os limites impostos pela lei, mormente aqueles de ordem tributários e guardado o acompanhamento do Ministério Público, no caso das Fundações1.
Perda da Total Independência e do Status de Ente de Direito Privado
De acordo com o novo Código Civil, as entidades devem deixar claras as fontes de recursos de que se utilizam para a consecução de seus fins no exame de seu estatuto social. Flagrando que a instituição será mantida por fontes diretas (auxílios, subvenções, convênios, patrocínios ou parcerias) ou indiretas (benefício fiscal) oriundas do orçamento público, logo devemos peregrinar na identificação de outra disposição estatutária, que é aquela que regula os seus fins, ou melhor dizendo, sua vocação. A Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS)2 apenas confere o empírico reconhecimento de entidade ou organização de assistência social àquelas que prestarem atendimento e assessoramento não cumulativamente: à família, à maternidade, à infância, à adolescência, à velhice e ao deficiente físico. Nesta ordem, se a instituição social lança em seu estatuto que manterá a obra através de recursos públicos e também privados, deverá obrigatoriamente prever a extensão de sua assistência nos exatos ditames da LOAS. A partir do momento que passou a integrar o rol dos tomadores dos recursos públicos, mediante o preenchimento dos todos os requisitos da lei, de forma direta ou indireta, ainda que na condição de mero repassador por meio de ações sociais, perde parcialmente, no nosso ponto de vista, a condição de ente eminentemente de direito privado, e passa a ter que obedecer, em determinadas ações da vida civil, o mesmo regramento das empresas públicas. O art. 74, inciso II, combinado com o parágrafo único do art. 70, da Constituição Federal, dispõe que os poderes legislativos, executivo e judiciário, manterão um sistema de controle da legalidade e avaliação dos resultados da gestão financeira e patrimonial, entre outros, das entidades de direito privado, as quais de forma direta ou indireta, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos. Interpretando a norma ao pé da letra, implica na afirmação que a liberdade de ação conquistada quando da união dos membros para a constituição da instituição, deixou de reinar por absoluto, após a participação na fatia do erário público, eis então a dedução que a entidade passou a ter um capital misto, e por conseqüência passou a ser um ente público-privado, dentro do ordenamento do direito administrativo.
Vedação Legal da transformação
da filantrópica em sociedade
de fins lucrativos
Na órbita do estudo acima, focamos que o ingresso do recursos públicos no caixa das entidades sociais, sejam elas de mero assistencialismo, ou de educação ou saúde, desbancam a plena liberdade de ação, em especial no tocante a mutação patrimonial. Quando falamos da participação das entidades sociais no orçamento do dinheiro público, afirmamos que ela pode ocorrer de duas formas: direta ou indiretamente. Analisando a participação direta, ou seja, a recepção de uma fatia do dinheiro creditada na conta-corrente da instituição, por meio de um auxílio ou subvenção, detectamos no âmago da norma constitucional, algumas regras de primária interpretação e dedução ao impedimento da conversão da instituição em uma sociedade com fins lucrativos, senão vejamos: (a) O art. 213 diz que os recursos públicos somente poderão ser destinados, entre outras, às escolas filantrópicas que comprovarem finalidade não-lucrativa e que aplique seus excedentes financeiros em educação, e mais, que assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola, filantrópica ou ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades. Em arremate ao caso de entidades beneficentes de educação, destacamos também que a lei federal no 9.870/99, que regula o tratamento das mensalidades escolares, prevê em seu art. 7o B, a obrigatoriedade das entidades mantenedoras de instituições de ensino superior, sem finalidade lucrativa, destinar seu patrimônio a outra instituição congênere ou ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades, promovendo, se necessário, a alteração estatutária correspondente; (b) O art. 199 dispõe que, entre outras, as filantrópicas e as sem fins lucrativos, poderão participar da assistência à saúde e de forma complementar do Sistema Único de Saúde, porém veda a destinação de recursos públicos às instituições privadas com fins lucrativos. Na pueril interpretação da Constituição, deduzimos no primeiro caso, que a instituição que resolver por meio do seu colegiado competente encerrar suas atividades, obrigatoriamente deverá delegar sua obra e patrimônio a outra instituição congênere ou ao Estado. Já no segundo caso a norma maior veda a repartição de recursos públicos às sociedades com fins lucrativos. Na seara da participação indireta, que, no caso, se trata do benefício advindo da imunidade/isenção fiscal, também encontramos outros obstáculos no âmbito das demais legislações3 que regulam o acesso ao favor tributário. A norma cogente prevê que no caso de dissolução ou extinção, o eventual patrimônio remanescente deve ser destinado a entidades congêneres registradas no CNAS ou a entidade pública. O Código Tributário Nacional4, no Capítulo que trata das imunidades tributárias, também prevê que um requisito ao acesso da imunidade é a não distribuição de qualquer parcela do patrimônio da instituição a qualquer título quiçá para o caso de transformação da instituição social filantrópica em sociedade com fins lucrativos. Precisamente em seu art. 7ºC, a lei 9.870/99, já mencionada, também determina que as entidades mantenedoras de instituições privadas de ensino superior filantrópicas, entre outras, não poderão ter finalidade lucrativa, e devem obediência ao mencionado Código Tributário Nacional, a exemplo da lei de custeio da seguridade social5. Analisando agora, sob o prisma do direito comercial, destacamos que são cinco as formas de mudança na estrutura jurídica da pessoa jurídica, alienação, fusão, incorporação, cisão e transformação. Cabe-nos, neste momento, apenas estudarmos o caso da transformação, se é ou não aplicável às associações e/ou fundações. Em poucas palavras, transformação é a operação pela qual a sociedade passa, independentemente de dissolução e liquidação, de um tipo para outro, segundo o art. 220 da Lei 6.404/76. De forma exemplificativa, uma sociedade LTDA passa S/A, ou vice-versa. A lei é clara em afirmar que tal prerrogativa somente pertence às sociedades6, o que por si só, já afastaria a figura das filantrópicas que não são integrantes da família das sociedades, mas sim das associações e fundações.
Conclusão
Todavia, ainda que fosse possível a transformação da filantrópica em sociedade com fins lucrativos, encontraríamos outros entraves, neste caso intransponíveis, senão vejamos: (a) A transformação não gera dissolução da instituição7, o que resulta na continuidade de suas atividades, inclusive as de caráter social; (b) Passando a instituição ter fins lucrativos, ante os efeitos da transformação, toda sua essência social estará comprometida, em especial no campo do direito tributário, pois estará contrariando aos princípios de sua constituição, bem como o art. 14 do CTN, a exemplo da Lei 8.212/91, sem falar no afronto a LOAS e a todos os regramentos das instituições sociais; (c) Por outro lado, se a instituição social que já se beneficiou do dinheiro público por vias diretas ou indiretas, já agregou em seus caixas cifras dissociadas do capital próprio, e assim sendo, transforma-la implicará na privatização do bem público, sem qualquer praxe legal, mormente a licitatória com pronta devolução das riquezas adquiridas aos cofres públicos. Diante de tudo o exposto, não nos intimidamos em afirmar que é terminantemente vedado por lei a transformação da associação ou fundação social filantrópica, em uma sociedade com fins lucrativos, e qualquer tentativa nesta linha, está sujeita a caracterização do enriquecimento sem causa dos seus protagonistas, que responderão não só civilmente, mas também criminalmente ante a malversação do dinheiro público.