Após dez anos da promulgação da Carta Política, o Estado passou a incluir no debate de sua reforma administrativa – por meio da iniciativa do governo Fernando Henrique Cardoso, que criou a Câmara da Reforma do Estado, presidida pelo Ministro Chefe da Casa Civil – o Programa Nacional de Publicização (PNP), que autoriza o Executivo a descentralizar a ação estatal. Esse modelo adveio do programa britânico de autoria da então primeira-ministra Margaret Thatcher, a “Dama de Ferro”, denominado “corpos públicos não-departamentais” (ou quangos, quasi autonomous non governamental organizations), sob a influência da teoria do Estado Mínimo, defendida na obra do filósofo norte-americano Robert Nozick, que traduziu um marco ideológico por meio do seguinte conceito: “o Estado mínimo é o Estado mais extenso que se pode conceber. Qualquer Estado mais extenso viola os direitos das pessoas”.
Nessa ordem, o Brasil importou o conceito, e por advento da emenda constitucional nº 19/98, resultou a institucionalização do PNP, por meio da lei federal nº 9.637/98, que trouxe a proposta de qualificar como organização social as pessoas jurídicas sem fins econômicos (associações e fundações) que contemplam missão social de desenvolvimento de ensino, pesquisa científica, tecnologia, proteção e preservação do meio ambiente, cultura e saúde, com o fim de descentralizar a missão estatal.
O ponto nodal da iniciativa se prende ao fato da abertura maiúscula para o ente privado de interesse público solenizar, com o Estado, contratos de gestão para a formação de parceria entre as partes, visando ao fomento e execução de atividades relativas às áreas descritas, mediante a destinação de recursos orçamentários e bens públicos necessários ao cumprimento de seus objetivos, com a dispensa de processo licitatório, cuja regulação partiu da lei subsequente àquela das Organizações Sociais, nº 9.638/98, que acrescentou na Lei das Licitações, nº 8.666/93: “Art. 24 – É dispensável a licitação: XXIV – para a celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais, qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão”.
Não é interessante que o êxito da reforma do Estado esteja preso à alforria do excesso de burocracia da Administração Pública, que, segundo o professor Roberto Dromi, é uma cara “máquina de impedir”, ou seja, um código do fracasso, que dispõe: “artigo primeiro: não pode; artigo segundo: em caso de dúvida, abstenha-se; artigo terceiro: se é urgente, espere; artigo quarto: sempre é mais prudente não fazer nada”; porém, dada a cultura corrupta de parte de espertalhões brasileiros, liberdade muitas vezes se confunde com libertinagem, e o uso da organização social pode, em verdade, ser o ralo do dinheiro público. Eis então a razão das críticas ferrenhas que dominam vários atores da sociedade, desde o cidadão até a classe médica.
O Ministério Público, na defesa do erário, está sem frenagem na captura judicial da tergiversação do recurso público, e as organizações sociais (OSs) que se alinharam com municípios, sem o mínimo de respeito aos princípios que regem a administração pública, estão visitando o enfadonho papel do réu em ações de quilate milionário.
Longe de isentar a malversação do recurso público, é preciso que haja cautela na tentativa de separar o joio do trigo, sendo necessário rememorar que o contrato de gestão visa exatamente ao contrário, ou seja, tirar das mãos do aparelho do Estado a coisa pública degradada pela ingerência e ausência de controle. Assim, atacar a concepção da iniciativa legislativa que já deu e está dando certo em países considerados desenvolvidos é alforriar e premiar a deletéria ausência de fiscalização e punição, que seduz a roubalheira.
A própria lei das OSs prevê a atuação do Tribunal de Contas da União, do Ministério Público e da Advocacia da União, no zelo da gestão, sob pena de expropriar bens dos administradores, mediante prévia decretação judicial de indisponibilidade, o que implica afirmar que há, sim, ferramentas eficazes para impedir, ou ao menos inibir, a virulência daquele que enxerga na OS um caminho tortuoso de enriquecimento sem causa, por advento do divórcio do processo licitatório.
O próprio cidadão possui instrumentos jurídicos e sem ônus de ação contra o assaltante do cofre público, quer por meio da denúncia, quer por meio do aforamento de ação popular, cujo mérito é obstruir a tentativa vil do desvio.
De outro lado, não há como deixar de exortar algumas medidas que permeiam os princípios da administração pública, indispensáveis à gestão salutar da organização social, que são o da: legalidade, pessoalidade, moralidade, eficiência e publicidade, que didaticamente assim devem ser aplicados na operação.
Contratação da mão-de-obra
É certo que o contrato de gestão, como a própria expressão impõe seu conceito, trata-se da gestão de um bem a serviço do público pela iniciativa privada. O Estado, no sentido lato, está limitado a contratar pessoal dentro de um limite orçamentário que não ultrapasse 60% de sua receita, conforme se verifica na previsão contida no artigo 169 da Constituição Federal, e por conta desse impedimento, muitas vezes o Executivo persuade as organizações sociais a se utilizarem da prerrogativa do contrato de gestão para pendurar na folha de pagamento da instituição empregados a serviço do município.
Outra farsa é afastar o servidor público da administração pública, com justificativa alheia à prestação de serviço à OS, e lá o contratar como empregado com salário acima de mercado, o que traduz um desvio de finalidade.
Contratação divorciada do processo licitatório
Mesmo diante da alforria do processo licitatório, é notável e importante que as organizações sociais promovam ao menos uma tomada de preços por advento da contratação de fornecedores, evitando futuramente a torrencial suscitação de uso espúrio do recurso público.
É necessário ainda que haja um sistema de arquivo para resgate histórico de todas as aquisições e contratações, pois o tempo é inimigo da memória, e a ausência de provas materiais quanto à essência do negócio que envolve o dispêndio do recurso do erário poderá conflitar com o princípio da transparência, vindo a macular a gestão da organização social.
Sedução enganosa
A liderança do Poder Executivo, via de regra, possui armas de sedução das associações e fundações que estão acostumadas a conviver com o eco do caixa, e qualquer vintém parece a salvação da lavoura, e acabam muitas vezes comprando dificuldade por conta da facilidade.
Enfim, é indispensável que haja um filtro em toda proposta provinda do Poder Público, avaliando a extensão do contrato, para que possa representar uma complementação à obra estatal, em puro regime de descentralização, pois o desrespeito aos princípios da administração pública poderá transformar a volúpia na indústria da corrupção.