O governo federal, sob o aforismo da erradicação da desigualdade, criou, por comando do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), o Programa Universidade para Todos (ProUni), que possui como âncora o acesso dos estudantes egressos do ensino médio da rede pública ou da particular na condição de bolsistas integrais, com renda per capita familiar máxima de três salários mínimos à universidade privada.
Nesse programa se trava uma parceria entre o Estado e a universidade privada, sendo que a parte que incumbe ao Estado é conceder a alforria, por meio de isenção fiscal, e à universidade privada, em contrapartida, conceder as bolsas de estudos. Assim, logo se percebe que a sedução é mútua e, por isso, cabe parafrasear Nelson Rodrigues: “o dinheiro compra até amor sincero”.
A entidade filantrópica que faz a ação social por meio da educação também figura como ator deste cenário. Primeiramente por ser uma universidade privada de interesse público, e, em segundo lugar, porque sua condição a conduz a uma situação privilegiada perante as demais, pois a Constituição Federal consigna prioridade nas parcerias do Estado com as entidades tidas como filantrópicas.
Mergulhando na Lei do ProUni, nº 11.096/05, há imposição de uma condição sine qua non para que a instituição privada possa ser considerada entidade filantrópica1 e receber o privilégio fiscal previsto em tal lei: a oferta de, no mínimo, uma bolsa de estudo integral para estudante de curso de graduação ou sequencial de formação específica, sem diploma de curso superior, para cada nove estudantes pagantes, ainda que a instituição de ensino superior atue também no ensino básico ou em área distinta da educação.
E mais: consta ainda a obrigatoriedade das filantrópicas comprovarem a aplicação em gratuidade de ao menos 20% da receita bruta proveniente da venda de serviços, acrescida da receita decorrente de aplicações financeiras, de locação de bens, de venda de bens não-integrantes do ativo imobilizado e de doações particulares.
Para o cumprimento do referido percentual de gratuidade, a lei dispõe que poderão ser contabilizadas, além das bolsas integrais, as bolsas parciais de 50 ou de 25% em programas não-decorrentes de obrigações curriculares de ensino e pesquisa.
Didaticamente, a Lei do ProUni impõe os seguintes requisitos para que a entidade possa ser reconhecida como filantrópica e também para que seja isenta dos seguintes tributos:
I. Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas;
II. Contribuição Social sobre o Lucro Líquido;
III. Contribuição Social para Financiamento da Seguridade Social;
IV. Contribuição para o Programa de Integração Social.
Primeiro requisito | Segundo requisito | Terceiro requisito |
Aplicar regra de 9x1 | Bolsas integrais e parciais de 25 e 50% | Que as bolsas e ações sociais representem ao menos 20% da receita bruta, exceto recurso público |
Muito embora haja essa previsão em lei específica acerca da participação da filantrópica no ProUni, recentemente nasceu outro ordenamento jurídico que, no mínimo, suscita um conflito de leis, pois:
Primeiro requisito | Segundo requisito | Terceiro requisito |
Aplicar regra de 9x1 | Bolsas integrais e parciais de 50% A entidade também poderá contabilizar o montante destinado a ações assistenciais, bem como o ensino gratuito da educação básica em unidades específicas, programas de apoio a alunos bolsistas, tais como transporte, uniforme, material didático, além de outros, definidos em regulamento, até o montante de 25% da gratuidade | Aplicar anualmente em gratuidade pelo menos 20% da receita anual efetivamente recebida em mensalidades escolares |
Observe que não há previsão para a entidade de educação praticar gratuidades por meio de bolsas parciais inferiores ao percentual de 50%, como admite a Lei do ProUni.
Outro dado importante diz respeito à base de cálculo da gratuidade, pois a Lei do ProUni prevê que ela deve ser aplicada sobre a Receita Bruta, que envolve mensalidades escolares, aplicações financeiras, locações, doações particulares e vendas de bens não-integrantes do ativo imobilizado.
Já a nova lei prevê incidência apenas sobre a receita de mensalidades escolares efetivamente recebidas, cuja equação representa uma diferença significativa no caixa filantrópico.
Quarto requisito |
Para a entidade que, além de atuar na educação básica ou em área distinta da educação, também atue na educação superior, aplica-se a regra do ProUni, ora disposta no art. 10 da lei no 11.096, de 13 de janeiro de 2005. |
Diante disso, é fácil deduzir que o conflito das leis, no que tange aos requisitos para que a entidade seja reconhecida como filantrópica, está instaurado, o que remete a entidade a uma insegurança jurídica, a qual precisa ser dissecada a fim de se evitarem sequelas financeiras derivadas de aferições fiscais futuras.
A resolução do conflito de normas está permeada na Lei de Introdução do Código Civil, decreto-lei nº 4.657/42:
“Art. 2o – Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. § 1o – A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”.
A nova lei dispõe sobre a certificação das entidades beneficentes de assistência social e regula os procedimentos de isenção de contribuições para a seguridade social. Assim, o artigo 10 da Lei do ProUni, que aduz: “a instituição de ensino superior, ainda que atue no ensino básico ou em área distinta da educação, somente poderá ser considerada entidade beneficente de assistência social3 ...”, foi intrinsecamente revogada, pois a nova lei regulou inteiramente a matéria.
Nesta linha de entendimento, a entidade que atua somente na educação superior, para fins de ser reconhecida como entidade filantrópica e lutar pelo direito a lutar pelo benefício da isenção, deve atender a nova lei, e não a Lei do ProUni
A resenha de tal enquadramento legal veda a entidade de educação superior de praticar, por exemplo, a gratuidade parcial abaixo de 25%, ainda que prevista tal hipótese na Lei do ProUni.
Entretanto, a entidade filantrópica de educação superior que também atua em outras áreas, ou seja, a entidade mista, deverá respeitar todos os requisitos da lei nova; porém, poderá aplicar seus recursos no financiamento de bolsas em percentuais de 25%, eis que permitido se utilizar da regra do ProUni pela própria lei nova para o fim de contabilizar tais gratuidades parciais.
Por outro lado, a entidade de educação, ainda que filantrópica, que vislumbre apenas os benefícios fiscais previstos na Lei do ProUni e que não tenha pretensão de se aproveitar dos demais benefícios da isenção previdenciária, pode aderir ao ProUni e atender as regras daquela lei, ignorando os requisitos da nova lei, o que implicará na renúncia do status filantrópico. Nesta hipótese, o sinônimo da melhor alternativa será a equação financeira, e não a solução jurídica.
Enfim, conclui-se que o Brasil vive uma “disenteria jurídica”. Até os mais letrados pelejam para decifrar a tamanha avalanche legal e, por isso, aceitar o desafio de minorar as dúvidas do leitor foi uma árdua tarefa, mas que se revelou um gesto de cidadania.
A lei nem sempre traduz seu verdadeiro objetivo, mas expressa o interesse eleitoreiro do legislador. Contudo, se ela entregar dividendos para a sociedade civil organizada, que seja bem-vinda. Afinal, como dizia Adam Smith: “não é da benevolência do padeiro, do açougueiro ou do cervejeiro que eu espero que saia o meu jantar, mas sim do empenho deles em promover seu autointeresse”.