
Uma decisão proferida pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) representa um marco significativo para as entidades beneficentes de assistência social no Brasil. Em um acórdão que afasta autuação fiscal lavrada pela Receita Federal, a 2ª Seção, 2ª Câmara, 1ª Turma Ordinária do Carf decidiu que a mera prática de cessão de mão de obra por essas instituições não descaracteriza, por si só, a condição de entidade beneficente para fins de fruição da imunidade tributária prevista no Art. 195, § 7º, da Constituição Federal.
A decisão, materializada no Acórdão nº 2201-012.155, julgado em 12 de agosto de 2025, analisou o caso da Fundação Instituto de Pesquisa e Estudo de Diagnóstico por Imagem (Fidi), que havia sido autuada pela Receita Federal. O Fisco argumentava que a cessão de mão de obra pela entidade configuraria desvirtuamento de sua finalidade assistencial, levando à perda da imunidade das contribuições sociais previdenciárias.
"O cerne da questão residia na interpretação restritiva que o Fisco historicamente aplicava à atuação de entidades beneficentes que geram recursos por meio de serviços, como a cessão de mão de obra", explica Renata Lima, advogada do Escritório Lima & Reis Sociedade de Advogados, que atuou no caso. "Nossa estratégia foi demonstrar que essa interpretação é incompatível com o espírito da Constituição e, mais importante, com a clareza da Lei Complementar nº 187/2021, que modernizou o tratamento legal para o Terceiro Setor."
Historicamente, essa questão tem sido um ponto de discórdia entre as entidades do Terceiro Setor e os órgãos fiscalizadores. Um dos pareceres que embasavam a interpretação restritiva do Fisco era o Parecer CJ nº 3.272/2004, que condicionava a manutenção da isenção ao "caráter acidental" da cessão de mão de obra e à sua "mínima representatividade quantitativa". Tal entendimento, contudo, carecia de previsão legal expressa e gerava insegurança jurídica.
O Carf, ao julgar o recurso, adotou uma linha de raciocínio alinhada à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e, crucialmente, à legislação mais recente, a Lei Complementar nº 187/2021.
O que diz a decisão do Carf:
O acórdão destaca que:
· Inaplicabilidade de Entendimentos Restritivos Anteriores: Reconheceu-se que o Parecer CJ nº 3.272/2004, bem como outras interpretações restritivas baseadas em critérios subjetivos como "caráter acidental" e "mínima representatividade", não encontram mais respaldo no ordenamento jurídico vigente, especialmente após a promulgação da LC nº 187/2021.
· Legalidade da Atividade Econômica para Sustentação Social: A decisão reforça que a obtenção de receitas por meio de atividades econômicas, incluindo a cessão de mão de obra, é compatível com a natureza beneficente da instituição. O ponto central reside na destinação integral dos resultados operacionais para a manutenção e o desenvolvimento das finalidades essenciais da entidade. Conforme expresso no voto, "o fato de a atividade ser onerosa não vai de encontro com o requisito constitucional de que a entidade beneficente não deve ter lucros".
· Apoio da Lei Complementar nº 187/2021: A legislação recente foi determinante. O Art. 7º, § 2º, da LC nº 187/2021 estabelece que: "As entidades poderão desenvolver atividades que gerem recursos, inclusive por meio de suas filiais, com ou sem cessão de mão de obra, independentemente do quantitativo de profissionais e dos recursos auferidos, de modo a contribuir com a realização das atividades previstas no art. 2º desta Lei Complementar, registradas segregadamente em sua contabilidade e destacadas em suas Notas Explicativas." Esta previsão legal é clara ao autorizar a prática, desde que respeitados os princípios da transparência, segregação contábil e destinação integral dos resultados às finalidades assistenciais gratuitas.
· Jurisprudência do STF consolidada: O acórdão alinha-se à jurisprudência do STF, que há muito tempo diferencia a gratuidade do serviço prestado aos beneficiários da capacidade da entidade de gerar recursos por meio de atividades remuneradas. Decisões como a ADI nº 2.028 e o RE nº 566.622 (Tema 32 da Repercussão Geral) já assentaram que a imunidade tributária não se condiciona à gratuidade absoluta, mas à correta aplicação dos recursos na finalidade social.
· Afastamento da violação ao Art. 55 da Lei nº 8.212/91: O Carf concluiu que, diante da ausência de Lei Complementar vedando a cessão de mão de obra por entidades imunes para terceiros, deve-se afastar a imputação de violação ao Art. 55 da Lei nº 8.212/91, que tratava de requisitos para a isenção previdenciária e foi alvo de declarações de inconstitucionalidade por parte do STF em diversos incisos.
Implicações e o futuro do Terceiro Setor
"Esta decisão do Carf é uma vitória não só para a fundação, mas para todo o Terceiro Setor. Ela reafirma que a essência da imunidade está na destinação dos recursos para fins sociais, e não na proibição de qualquer atividade econômica lícita como meio de captação", avalia Renata Lima, advogada responsável pelo caso. "Isso confere segurança jurídica e incentiva a sustentabilidade das organizações que atuam complementando o Estado em áreas essenciais como saúde e educação", complementa Guilherme Reis, também advogado responsável pelo caso.
Ainda de acordo com a advogada, a vitória no Carf não apenas protege a entidade autuada de um ônus tributário indevido, mas também estabelece um importante precedente administrativo.
“Em um cenário de crescente demanda por serviços sociais, de educação e de saúde, a capacidade das entidades beneficentes de diversificar suas fontes de receita sem o risco de perder a imunidade é crucial. Esta decisão do Carf, portanto, não é apenas uma vitória jurídica, mas um incentivo à inovação e à sustentabilidade das organizações que tanto contribuem para o desenvolvimento social do país”, complementa Renata Lima.
Fonte: Lima & Reis Sociedade de Advogados
Foto: gustavomellossa / Freepik




































