Um homem liga o rádio em seu apartamento, roda um ou dois programas e coloca os fones de ouvido, o que faz o som externo desaparecer instantaneamente.
Do quadrado preto no chão surge uma bateria holográfica de vinte peças. O homem se posiciona e apanha as baquetas. A música começa e ele entra com a bateria: acompanha a cadência em princípio, mas, empolgado, se deixa levar pelo ritmo, fazendo diversos riffs de improviso, brincando à vontade nos tambores. Ao sentir-se aquecido e inspirado, interrompe o treinamento, vai até o aparelho e faz algumas novas configurações. Volta para o instrumento e outra música se inicia.
Uma leve brisa desencosta a porta que estava entreaberta. Nesse instante uma bolha de sabão entra no quarto sem ser vista. Ela flutua tranqüilamente pelo recinto e pára diante do rosto do homem por alguns segundos. A bolha volta a se movimentar e segue através da fresta da porta até chegar à sala, onde uma mulher, também com fones, assiste a um filme de época.
Na tela, várias cenas se sucedem: um Drakkar Viking luta contra um mar gelado e de mau-humor; um tuaregue cruza o deserto sobre um dromedário; um esquimó atravessa um enorme abismo de gelo com o trenó; um índio rema sua piroga cheia de caça rio acima, em plena selva amazônica; um astronauta flutua pelo espaço, amarrado à nave apenas pelo cordão umbilical, e outro pisa pela primeira vez no solo da lua. Certa cena de noticiário televisivo mostra duas legendas: a primeira diz estranhas luzes no céu da capital e a segunda, embora a matéria já fosse muito antiga, ainda insiste em falar ao vivo.
A bolha se afasta e sai pela janela, distanciando-se do prédio. Ela aos poucos revela o formato de um grande bolo sustentado por uma haste, que o eleva sobre uma densa camada de nuvens. Ao redor, diversos edifícios com o mesmo aspecto.
Passeando a grande velocidade, a bolha costura seu caminho por entre as magníficas estruturas. Em determinado ponto, mergulha nas nuvens. Ao atravessar a camada inteira, revela forte tempestade tropical em uma antiga metrópole abandonada.
Simetricamente dispostas estão as gigantescas fundações das torres e algumas poucas áreas são reservadas a equipes de estudiosos. Tudo cuidadosamente cercado e protegido.
A cidade por completo edifícios grandes e pequenos, construções de todos os tipos e tamanhos, ruas e avenidas, túneis, pontes e viadutos tudo havia sido previamente limpo, devidamente desocupado e solenemente entregue às mãos da natureza, para ela dispor como quisesse.
As marcas que a humanidade deixou na superfície acabaram por se tornar morada para o resto dos habitantes do planeta. Subsolos de prédios viraram cavernas, os lagos dos parques servem de lar para peixes, os apartamentos e casas passaram a abrigar milhares de famílias de pássaros, leões, zebras, vacas, cachorros, gatos, enfim, todos os gêneros descendentes dos antigos animais de estimação e daqueles libertos das jaulas de zoológicos e gaiolas, que aprenderam a lidar com esse novo cenário, deixado por uma raça que, finalmente, evoluiu.
A bolha vaga um pouco por tal selva e volta a ganhar altitude, passando novamente pelas nuvens e bolos, subindo gradativamente... No meio do caminho, ela se detém por alguns instantes. Daqui de cima, a impressão é de se ver vários percevejos espetados em uma imensa almofada de algodão. Retomando sua jornada, a pequena bolha ultrapassa rapidamente os limites da atmosfera da Terra. Quanto mais distante, mais se percebe a real dimensão desse corpo celeste.
A bolha de sabão dá algumas voltas ao redor do planeta e assume uma órbita estacionária. Num salto ela dispara, deixando longo rastro brilhante, que durou apenas o suficiente para denunciar sua rota em direção ao nosso Sol...
Sol que ainda estará brilhando muito acima de nossas cabeças e tempestades...
Acima da tecnologia e das nossas atitudes...
E sobre qualquer que seja a nossa história...
... nessa POSSÍVEL tarde quente de final de inverno, começo de verão do ano de 2173.