A assistência social é parte do sistema de seguridade social previsto no art. 194 da Constituição Federal (“CF/88”), sendo a descentralização, coordenação e execução de suas ações duas das diretrizes fixadas no artigo 204, I. Ao longo do texto constitucional, além dos dispositivos voltados à atuação estatal no âmbito da assistência social enquanto agente responsável por prover essas políticas públicas, há dispositivos voltados à regulação da assistência social realizada por entidades privadas.
Sob o aspecto das fontes de financiamento das atividades assistenciais, verifica-se a permissão constitucional de o Poder Público contratar, com parceiros privados, a consecução de projetos voltados ao atendimento, assessoramento, proteção e garantia de direitos, bem como a instituição das imunidades tributárias previstas nos art. 150, VI, c e 195, §7º, todos da CF/88, cujo objetivo principal é o incentivo à prática da assistência social por entidades privadas de caráter beneficente.
Sendo constitucionalmente assegurado o compartilhamento entre o Estado e entidades particulares no tocante à assistência social e do interesse de ambos seu pleno desenvolvimento, o Estado abre mão de enxergar as atividades de assistência social como fonte de arrecadação tributária. Ao contrário, por saber que a carga tributária é elemento de decisão acerca do exercício ou não de determinada atividade, a própria Constituição Federal viu por bem retirar as atividades assistenciais do rol de incidência tributária, de modo a torná-las mais sustentáveis e longevas.
Desse modo, portanto, fica claro que a imunidade é um mecanismo de incentivo ao exercício da assistência social pelo particular que exerça atividades de interesse público, não podendo jamais ser considerada um fim em si mesma, tampouco mera concessão de benesses tributárias para entidades privadas. Com isso, pode-se dizer que as entidades de assistência social, para alcançar todos os benefícios concedidos pelo Estado para o incentivo de suas atividades, devem atender e preencher não apenas todos os requisitos legais formais para a fruição da imunidade tributária, mas também observar estritamente o preenchimento dos demais requisitos materiais afeitos a suas atividades.
Os requisitos para gozo da imunidade fixados pela CF/88 e a legislação infraconstitucional (art. 14, CTN) são: não distribuírem qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas rendas, a qualquer título; aplicarem integralmente, no país, seus recursos na manutenção de seus objetivos institucionais; e manter escrituração contábil regular. Todas essas exigências são voltadas estritamente para que os Fiscos Estadual, Municipal e Federal tenham ferramentas para aferir a retidão do exercício das atividades da entidade, bem como a fidelidade desta com os requisitos legais para a concessão da imunidade.
Não basta, portanto, as entidades privadas exercerem apenas em tese suas atividades assistenciais e usufruir, como consequência natural, da imunidade. É preciso ir além. Desse modo, é imprescindível que as entidades adotem mecanismos de compliance fiscal para garantir que as atividades por elas exercidas estão sendo devidamente vertidas em informação fidedigna e válida para análise pelo Fisco e para a fruição da imunidade.
Nesse contexto, o compliance fiscal seria um conjunto de medidas adotadas pela entidade para garantir que suas atividades sejam efetivamente realizadas em conformidade com a legislação aplicável. Dentre essas medidas, podem-se citar: a revisão periódica das demonstrações contábeis, com objetivo de verificar se os lançamentos contábeis estão sendo realizados adequadamente, sem configurar desvio no exercício das atividades da entidade; a revisão da documentação-suporte das operações da entidade; e a análise das declarações fiscais e de documentos societários, com o objetivo de verificar se a entidade vem cumprindo regularmente suas funções e se há qualquer incorreção na forma de apurar e informar suas receitas e despesas aos entes fazendários.
Todas essas medidas possuem o principal objetivo de tornar as informações contábeis, financeiras e tributárias da entidade mais verossímeis e capazes, de fato, de refletir sua realidade. Com isso, os riscos de questionamento do Fisco em relação à organização fazer jus ou não a usufruir da imunidade tributária seriam bastante mitigados. Adicionalmente, vale mencionar que todas as entidades, independentemente do porte, devem se utilizar dos mecanismos de compliance. Evidentemente, eles devem ser dimensionados de modo que sejam condizentes com o porte e perfil das atividades da organização. Desse modo, qualquer uma está apta a criar e implementar seu programa de conformidade; mais vale um programa de conformidade que possa ser efetivamente implementado do que um programa tecnicamente robusto, porém inexequível.
É importante observar que todas as questões acima abordadas relacionam-se com o cumprimento de formalidades tributárias perante os órgãos fazendários e a utilização da imunidade tributária como mecanismo para fomentar o exercício de atividades assistenciais por particulares.
Assim, mais do que um ente voltado para atender requisitos estabelecidos pelo Fisco ou da Certificação CEBAS (Lei 12.101/2009), as entidades de assistência social possuem um compromisso ainda maior com a efetiva prestação dos serviços assistenciais. É preciso, portanto, que haja uma preocupação em buscar aperfeiçoar cada vez mais o serviço assistencial, dotando-o de elevada qualidade.
Nesse contexto, a compreensão do compliance deve se expandir, saindo da esfera apenas de seu componente fiscal para contemplar também um conjunto de medidas adotadas pelas entidades com o objetivo de fazê-las alcançar patamares mais elevados de governança e qualidade na execução de suas atividades. Não basta, portanto, que a organização exerça, nos termos de seu objeto social, atividades assistenciais, nem que esteja meramente previsto nos seus atos constitutivos e que haja previsão de, em caso de dissolução ou extinção, a destinação de eventual patrimônio remanescente para entidades congêneres (cf. Lei 12.101/2009).
É preciso que as organizações busquem estar alinhadas com princípios basilares de governança, consistentes na transparência, equidade, prestação de contas e responsabilidade pelas suas atividades sociais. Esse movimento qualitativo possui um paralelo já ocorrido na última década com as empresas brasileiras no tocante à apresentação de informações para o mercado, após o advento de uma série de normas e regulamentos, tais como a recepção de normas contábeis internacionais (International Financial Reporting Standards - IFRS) pela legislação brasileira (Lei 11.638/2007), que demandam das empresas maior transparência quanto às suas informações, não apenas financeiras.
A provocação deste artigo, portanto, consiste em lançar a discussão acerca da necessidade de as entidades de assistência social buscarem adotar níveis mais elevados de compliance e governança para que, por consequência, haja um enriquecimento do ecossistema assistencial em virtude do incremento da qualidade dos serviços prestados e maior possibilidade de controle social das organizações que, por via indireta, são financiadas, ainda que parcialmente, por recursos públicos. Para além das imunidades, portanto.
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