Julgamento Da Ação Direta De Inconstitucionalidade Nº 2.028

Por: Marcos Biasioli
06 Julho 2015 - 23h43

O Que Pode Mudar Na Vida Das Entidades Beneficentes?

rf72 19Em um país que tem 10,5 milhões de miseráveis, ou  seja, que vivem como indigentes e não possuem  sequer condições de se alimentar, assomados a 28,6  milhões de pobres, assim qualificados ante ao fato  de que têm o dobro da renda da linha de miséria, segundo  a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios  (PNAD), do IBGE, fica claro que quase 20% da população  brasileira ainda não possui os mínimos necessários para viver. 

Os indicadores mostram a baixa escolaridade, a disparidade  da distribuição de renda, a falta de moradia, a saúde precária,  a fome e a desnutrição, assomadas à ampla demografia do  Brasil, são os maiores ingredientes desse quadro.
No entanto,  e não menos importante, destaca-se a ausência de gestão eficiente  pelo Governo, em especial no controle do consumo  de ativos do erário, evitando que a chaga da corrupção que  assola o orçamento público possa tirar do pobre ao menos a  comida.Apenas o valor contabilizado (diga-se de passagem,  sem muito parâmetro, eis que alimentados com dados da  operação Lava-jato da Polícia Federal) pela Petrobras, como  fruto de corrupção, ou seja, R$ 6,2 bilhões, seria suficiente  para distribuir, no mínimo, uma cesta básica para cada miserável/  pobre do país. 

É claro, então, que o Estado por si só não possui arsenal  para a erradicação de tais chagas, de modo que ele carece da  ajuda da sociedade civil organizada, que funciona como sua  longa manus (extensão), e não como mero coadjuvante que  integra o Terceiro Setor. A prova disso é que milhares de vidas  são diariamente promovidas por ela em nome dele, quer por  meio da assistência, da saúde ou da educação. Sem as instituições,  seguramente os números apontados pela PNAD  seriam mais catastróficos. 

Para prover o referido múnus público, a Constituição  Federal de 1988 acalentou uma limitação ao Estado, que é  a de não tributar (com impostos1 e contribuições2) a sociedade  civil organizada, reconhecida como beneficente, dado  que o inverso seria como tributar o próprio Estado, para que  o valor dos referidos tributos sejam convolados em ações  sociais. Em outras palavras, o Estado tira o recurso de um  bolso para lançá-lo em outro. 

No entanto, o governo, agindo em nome do Estado, ao  invés de aliar-se, debater e buscar alternativa para a saúde econômica  das beneficentes, dado que elas assumiram a função  estatal, preferiu legislar de forma uníssona, em prol apenas  do enriquecimento do erário, lançando uma vala econômica  a tais entes privados de interesse público, desembocando em  um grande duelo judicial, cujo tema gravita nas lides fiscais  de quase todos os Tribunais Estaduais. 

Ao que tudo indica, o Supremo Tribunal Federal deve  colocar, em breve, uma pá de cal em tal imbróglio jurídico,  de modo que cabe refletir quais reflexos e/ou consequências  visitarão a operação da entidade beneficente. 

Entendendo O Conflito

O legislador constitucional de 1988, ao regular o financiamento  da seguridade, assim o fez: “Art.195. A seguridade  social será financiada por toda a sociedade, de forma direta  e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes  dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e  dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: “I - do  empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma  da lei, incidentes sobre: a) a folha de salários e demais rendimentos  do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à  pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;  b) a receita ou o faturamento; c) o lucro;...”. 

Relevando que a Constituição Federal é pragmática,  cabe ao Congresso Nacional regular, por meio de legislação  própria, as matérias nelas contidas. No que diz respeito ao  financiamento da seguridade social, objeto do referido artigo  195, o Congresso manteve-se inerte e deixou de legislar, de  modo que foi colocado em mora pelo STF, por advento de  um Recurso Extraordinário. O ato judicial levou à promulgação  da Lei nº 8.212/91. 

Do texto primitivo da referida lei, constava do “Artigo 55:  Fica isenta das contribuições de que tratam os arts. 22 e 23  desta Lei a entidade beneficente de assistência social que atenda  aos seguintes requisitos cumulativamente: ... III - promova  a assistência social beneficente, inclusive educacional ou de  saúde, a menores, idosos, excepcionais ou pessoas carentes;”. 

Logo se entende que a legislação originária não impunha  qualquer limitação ou quantificação percentual de gratuidade  para que a entidade beneficente pudesse ter reconhecida sua  (NOTA DE RODAPÉ)  “isenção3” tributária. 

Entretanto, em 11 de dezembro de 1998, foi promulgada  a Lei nº 9.732, que alterou os critérios da “isenção”, uma vez  que sua redação alterou aquela acima descrita, constante do  inciso III, limitando que o benefício somente seria devido  àquelas entidades que: (i) prestassem serviços exclusivamente  gratuitos às pessoas carentes; ou (ii) atendessem pacientes do  SUS em volume não inferior a 60%; ou (iii) condicionando a  isenção na proporção do financiamento da saúde e/ou escolar. 

O velho ditado já dizia: “dois pobres não se sustentam”,  isto é, para que a entidade beneficente possa servir ao Estado,  ela não pode agir como ele, ou seja, servir-se da arrecadação  tributária – apenas para bancar o custo da máquina pública.  É necessário, então, que ela produza recursos para sua sustentabilidade,  ao ponto de não depender tão somente da “vaca  leiteira do Estado”. 

Porém, a Lei nº 9.732/98 vedava qualquer venda de serviço  social, e soterrava a própria subsistência do ente beneficente,  pois ele gasta muito mais com a promoção humana  do que recebe do Estado, por meio do não recolhimento do  tributo. De outro lado, segundo a lei, o ente que não cumprisse  a determinação legal estaria impedido de usufruir a  “isenção” tributária das contribuições sociais. 

Traduzindo, a lei determinava aos entes sociais: - “Promova  a educação, a saúde e assistência, apesar de ser dever do Estado,  e não seu, com recursos próprios, não cobre nada pelos seus serviços,  inclusive daqueles que podem pagar, senão lhe suprimo  a isenção”. 

Diante de tais despautérios da lei, além da falta de diálogo  com o Governo, não restou alternativa aos entes sociais  que não o aforamento de medidas judiciais, as quais estão  em foco para breve decisão no STF. 

Mérito Jurídico Da Adin 2028 No STF 

A Confederação Nacional de Saúde-Hospitais,  Estabelecimentos e Serviços-CNS foi a autora da referida  ADIN, sendo que requereu ao STF que declarasse inconstitucional  os artigos 1º, que alterou o inciso III do artigo 55  da Lei nº 8.212/91, bem como os artigos 4º, 5º e 7º da Lei  nº 9.732/98, os quais impõem aquelas restrições ao acesso  da “isenção” pelas entidades beneficentes. 

O Plenário do STF, cuja relatoria coube ao Ministro  Marco Aurélio, decidiu pela concessão da liminar, retirando  a eficácia daqueles dispositivos. 

Cabe observar que o pano de fundo contido na ação e  na liminar visa a estabelecer qual espécie de lei pode impor  limitações ao poder de tributar às entidades beneficentes. Isto  porque consta do artigo 195, parágrafo 7º, da Constituição,  o seguinte: “§ 7º - São isentas de contribuição para a seguridade  social as entidades beneficentes de assistência social  que atendam às exigências estabelecidas em lei.”. 

A União defende que a Constituição remete à Lei Ordinária  (aquela que requer apenas um quórum de votação de maioria  simples do Congresso Nacional – vide artigo 47 da CF/88)  ou à Lei Complementar (aquela que carece de um quórum de  maioria absoluta – vide artigo 69 da referida Constituição). 

Já a autora da ação CNS advogada na tese de que somente a  lei complementar pode limitar o poder de tributar, com base  no artigo 146, II da CF/88. 

Ao conceder a liminar, o STF se filiou à tese da autora,  sendo que, ao ser colocado em julgamento a referida ADIN  em 04/06/2014, os ministros Joaquim Barbosa, Carmem  Lúcia e Luiz Barroso votaram pelo provimento parcial da ação,  sendo pedido vistas pelo ministro Teori Zavascki, o que se  suspendeu o julgamento, o qual pode ser retomado em breve. 

Em outro recente caso similar em curso no STF, Recurso  Extraordinário 566.622, cujo mérito é praticamente o mesmo,  os ministros Marco Aurélio, Carmem Lúcia e Luiz Barroso  também entenderam que as limitações ao poder de tributar  deve ficar a cargo da lei complementar, e não da ordinária.  De igual sorte, o mesmo ministro Teori pediu vistas do processo,  também suspendendo o julgamento, que pode a qualquer  momento ser retomado. 

Cabe sublinhar que, se aquele referido caso vier a ser provido,  ele não terá efeito erga omnes, ou seja, somente valerá  para a autora. Porém, como foi recepcionado com Repercussão  Geral, influenciará em todos os demais julgamentos que estão  tramitando perante os Tribunais Regionais. No entanto, se a  ADIN for julgada procedente, o efeito é erga omnes, isto é,  valerá para todas as entidades beneficentes. 

Consequências Práticas Do Julgamento

Os efeitos de uma eventual decisão favorável pelo Supremo  Tribunal Federal poderão: (i) anular os efeitos da Lei nº  9.732/98, desde a sua origem, efeito ex tunc; (ii) aplicar a  teoria da modulação, ora prevista na Lei nº 9.868/99 – artigo  27, que permite que os seus efeitos sejam aplicados a partir  do julgamento, efeito ex nunc

Caso o STF entenda aplicável o efeito ex tunc, na prática  caem por terra todos os autos de infrações fiscais baseados  na Lei nº 9.732/98. Porém, o mais importante deste julgamento  será o reflexo imediato sobre a Lei nº 12.101/09, que  não tem o status de Lei Complementar, mas sim ordinária,  e que, a exemplo da Lei nº 9.732/98, impõe restrições ao  acesso da “isenção” das contribuições sociais pelas entidades  beneficentes. 

O eventual provimento da ADIN não afetará diretamente  os processos fiscais julgados com base na Lei nº 12.101/09,  ora alterada pela Lei nº 12.868/13, pois o mérito dela não  está jungido à nulidade por supedâneo da atual lei, mas o  fundo do julgamento poderá ser invocado por todas as entidades  beneficentes que foram punidas fiscalmente, com base  na referida lei, que não pode impor limites de gratuidades  para fins do gozo da imunidade tributária das contribuições  sociais, pois tal regulação cabe apenas à Lei Complementar,  no caso, Código Tributário Nacional, em especial os artigos  9º e 14º. 

Reflexos Nos Julgamentos  Administrativos E Judiciais

Na prática, todos os recursos administrativos das  entidades beneficentes, ora pendentes de julgamento no  Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF),  lançados contra autuações baseadas na Lei nº 9.732/98,  terão que seguir a ordem do STF, caso provida a ADIN,  com efeito ex tunc, ante a vinculação operada e prevista  no Regimento Interno daquele órgão, artigo 62, no inciso  I do seu parágrafo 1º. 

Já quanto aos processos que se encontram em sede judicial,  poder-se-á também se invocar o julgamento favorável  da ADIN, para que o magistrado ou o Tribunal o reconheça  quando do julgamento do mérito da ação singular, o caráter  vinculante, pois assim determina o STF: “É preciso enfatizar,  por relevante, que o Supremo Tribunal Federal tem assinalado,  em diversos julgamentos, que a existência de pronunciamento  anterior, emanado do Plenário desta Suprema Corte ou do órgão  competente do Tribunal de jurisdição inferior, sobre a inconstitucionalidade  de determinado ato estatal autoriza o julgamento  imediato da causa, não importando se monocrático ou  colegiado, sem que isso configure violação à reserva de plenário  (...):” (Rcl 17185 AgR, Relator Ministro Celso de Mello,  Segunda Turma, julgamento em 30.9.2014, DJe 27.11.2014).”. 

Reflexos Para Os Processos  Fiscais Julgados Com Tributos Pagos

A entidade beneficente que foi autuada sob os efeitos da  Lei nº 9.732/98 e, caso ela venha ser rechaçada pela a ADIN  2028, poderá requerer a “repetição do indébito” em sede judicial,  lembrando que os tributos da mesma espécie poderão  ser compensados. Porém, deve-se observar o prazo decadencial  de cinco anos a contar do lançamento do tributo, aliás,  este é o entendimento do STJ: 

“Ementa: Tributário. Processual Civil. Compensação. PIS.  Prescrição. 1.No âmbito do lançamento por homologação,  são compensáveis diretamente pelo contribuinte os valores  recolhidos a título de FINSOCIAL com a COFINS, todavia  a compensação do FINSOCIAL com o PIS não é admitida.  2. O PIS sujeita-se ao lançamento por homologação, faltante  este, o prazo decadencial só começa a fluir após o decurso  de cinco anos da ocorrência do fato gerador, somados mais  cinco anos, contados estes da homologação tácita do lançamento.  (RESP 297292/MG).”.

Influência Do Julgamento  Da Adin No Processo Cebas

O STF quando proferiu o recente voto do ministro  Marco Aurélio, ora Relator no referido Recurso Extraordinário,  reconheceu que toda regulação que vise restringir a imunidade  fiscal, por meio de lei ordinária que extrapole a previsão  dos artigos 9º e 14º do Código Tributário, é inconstitucional,  assim caso o recurso venha a ser procedente, ele terá  efeito oblíquo nos julgamentos dos processos relacionados  ao Certificado de Entidade Beneficente, pois se o CEBAS  representa um dos principais requisitos para o acesso à imunidades  das contribuições sociais, não poderá o legislador  ordinário promover outra restrição, por meio de dificultar  a sua concessão. 

No entanto, torna-se necessária a cautela, no sentido de  aguardar os julgamentos acima destacados, para que o mérito  possa ser invocado em cada caso específico. 

Enfim, a esperança é que fechemos um ciclo, com o esperado  provimento da ADIN e daquele Recurso Extraordinário.  Porém, não nos iludamos, pois muito debate jurídico ainda  teremos pela frente, mais fortalecidos do que antes, e confiantes  de que o Estado reconheça que as entidades beneficentes  não são apenas uma sociedade organizada e mera  coadjuvante, mas sim suas irmãs siamesas, com um detalhe  de diferença: mais competentes e eficazes!  


1Art. 150, VI, c.
2Art. 195, § 7º.
3O STF entende que houve um erro do Legislador, na verdade é Imunidade.

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