Imunidade tributária dos templos de qualquer culto

Por: Renata Lima, Glaucia Rios
28 Julho 2018 - 00h00

No final de 2017, os meios de comunicação divulgaram que a Câmara dos Deputados havia aprovado uma Medida Provisória (MP) que criava o Programa Especial de Regularização Tributária (Refis), com o qual é possível parcelar dívidas tributárias de pessoas físicas e jurídicas. Seguindo para o Senado, no entanto, os artigos que tratavam do perdão de dívidas tributárias para entidades religiosas e instituições de ensino vocacional sem fins lucrativos foram retirados do texto da MP. Encerrado o debate e negada a inclusão dessas entidades no Refis, segue-se outra discussão não menos acirrada: qual é a origem dos débitos que ensejou a consideração da inclusão das entidades religiosas no Refis?

Não desejando adentrar nas razões que levaram o Senado a negar a inclusão das entidades religiosas no Refis, mas tão-somente jogar um pouco de luz às incertezas quanto ao eventual crédito dos poderes tributadores em relação aos templos religiosos, torna-se pertinente questionar se as dívidas dessas entidades advêm de impostos e contribuições sociais relacionadas ao exercício de suas atividades essenciais. Tratando-se das referidas classificações, estará a eventual dívida sob o pálio da imunidade constitucional, não sendo, assim, objeto de inclusão em qualquer programa de parcelamento de dívidas com o Fisco.

O exercício do poder tributário do Estado encontra limitações na própria Constituição da República, que, em seu corpo, prevê expressamente:

Art. 150 – Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

[...]

VI – instituir impostos sobre:

[...]

b) templos de qualquer culto;

c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei;

[...]

§ 4º – As vedações expressas no inciso VI, alíneas b e c, compreendem somente o patrimônio, a renda e os serviços relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas.

Aquele que é imune não é desonerado por meio de isenção, uma vez que a imunidade advém da Constituição da República. Não se trata também de renúncia do poder tributante do Estado em favor da entidade religiosa. Ineficaz sua inclusão, caso se trate de impostos e contribuições sociais relacionadas às atividades essenciais da entidade religiosa, em qualquer programa de refinanciamento de dívidas tributárias, uma vez que não se tributa o que é imune. Não se cobra de quem é desonerado por meio da imunidade.

Não se trata de um beneplácito concedido aos templos de qualquer culto, mas, sim, de uma norma constitucional que impõe uma vedação absoluta ao poder tributante da União, dos estados, Distrito Federal e municípios.

As atividades realizadas pelos templos de qualquer culto, desde que vinculadas às finalidades essenciais da entidade religiosa, são imunes por meio de impostos e de contribuições sociais.

De nada adiantaria colocar uma norma protetiva, como é o caso da liberdade religiosa, sem um instrumento eficaz, capaz de viabilizá-la na prática. Da necessidade de concretizar a proteção à liberdade religiosa, que é um direito e uma garantia fundamental (artigo 5º, VI da Constituição da República), advém o instituto da imunidade. Imunidade que toma forma a partir da proibição dos entes federativos de cobrar impostos, como previsto no artigo 150, inciso VI, alínea b, e também imunidade por meio da proibição de cobrança das contribuições sociais, conforme § 7º do artigo 195, ambos da Constituição.

O jurista Roque Antonio Carrazza, no livro Imunidades tributárias dos templos e instituições religiosas (Noeses, 1ª edição, 2015), citar o exemplo de uma imunidade que se materializa pela desoneração de impostos cobrados como meio de intervenção do Estado na economia. Segundo o autor, se uma igreja adquire um objeto no exterior para ser empregado em seu culto, são vedadas as cobranças de IPI, ICMS, imposto de importação, PIS e Cofins relativos a essa operação.

Ainda, para este renomado jurista (2015), como decorrência da limitação do poder dos entes políticos no que tange aos impostos, poderiam ser também abrangidos pelo instituto da imunidade os seguintes impostos: “o IPTU dos locais de celebração de cultos – os templos propriamente ditos –; o ISS sobre a prestação do serviço religioso; o IRPJ sobre esmolas, espórtulas e dízimos pagos à igreja por seus fiéis; o ITBI sobre a aquisição de imóvel destinado ao exercício de culto religioso; o imposto de importação de bens relacionados com o culto; o IPI e o ICMS, desde que incidam sobre atos ou fatos coligados ao exercício das atividades religiosas”.
O trecho exposto é o que se depreende da leitura do § 4º do artigo 150, da Constituição: os templos religiosos de culto gozam de imunidade em relação aos impostos, desde que o patrimônio, a renda ou os serviços estejam relacionados às suas atividades essenciais.

Ampliado, tem-se revelado o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) em relação aos termos “templo”, “patrimônio”, “renda” e “serviço” das entidades religiosas. E não poderia ser diferente advindo da Corte Superior que, no intuito de preservar direitos fundamentais e promover princípios constitucionais como a dignidade humana, deixa claro em seus julgados o zelo pela liberdade de crença e práticas de cultos religiosos.

A Corte Superior, conhecedora da realidade social brasileira e da incapacidade do Estado em realizar sozinho seus objetivos, vê nas atividades desenvolvidas pelo Terceiro Setor (fundações e associações sem fins lucrativos, e entidades religiosas), a parceria de que necessita para viabilizar os objetivos fundamentais da República: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; o desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização; a redução das desigualdades sociais e regionais; e a promoção do bem de todos (art. 3º/CF). As decisões têm convergido no sentido de desonerar o Terceiro Setor a fim de que as entidades que o compõem não fechem suas portas e continuem a auxiliar o ineficiente Estado brasileiro nas questões de cunho social.

Assim, para fins tributários, as decisões têm sido no sentido de abarcar todo o patrimônio, renda e serviço das entidades religiosas desde que destinados integralmente à consecução de seus fins. Decidiu o STF no Recurso Extraordinário nº 876.253/Paraná quando da cobrança do ITBI em razão da aquisição de um imóvel destinado à construção de um templo religioso:

O fato gerador do ITBI se dá no momento da aquisição dos bens imóveis. Portanto, quando adquiridos por entidades imunes, a destinação de referidos bens às finalidades essenciais dessas entidades imunes deve ser pressuposta, sob pena de se inviabilizar a imunidade tributária em relação a esse tributo.

Ainda reconheceu o seguinte:

[...] as instituições religiosas e as demais entidades imunes gozam da presunção de que seu patrimônio, renda e serviços são destinados às suas finalidades essenciais, de modo que o afastamento da imunidade só pode ocorrer mediante a constituição de prova em contrário produzida pela administração tributária.

A imunidade abrange não apenas o local, a edificação onde são realizados os cultos, mas todo patrimônio, serviço e renda relacionados à consecução de suas finalidades essenciais. A prova de que não há correlação entre patrimônio, serviço, renda e as atividades essências das entidades religiosas é ônus do poder tributante.

Questão também a ser posta e de grande relevância é a abrangência do termo “templo”. A doutrina e a jurisprudência do STF têm convergido para uma interpretação extensiva do termo.

De acordo com Carrazza (2015, p. 42), “a expressão ‘templos de qualquer culto’ há de ser entendida com certa dose de liberalidade.” Assim, para exercerem seu ministério, as entidades religiosas, além do templo como espaço físico onde são celebrados seus cultos, necessitam de outros bens. Carrazza cita exemplos da amplitude do termo templo: a imunidade se estenderia à casa paroquial, locais de formação de religiosos (seminários), conventos e, quando se trata de Igreja Evangélica, o local onde o pastor reside, recebe os fiéis e prepara seus sermões, os locais de formação de futuros pastores; o terreiro, no caso da umbanda; na judaica, a casa do rabino e o rabinato, que é local de formação de rabinos etc.

Ainda nos dizeres de Carrazza, para o STF, o termo “templo” expresso no artigo 150, inciso VI, alínea b da Constituição da República “é o conjunto de espaços e bens postos a serviço da igreja, de sorte que a imunidade se estende aos seus prédios, veículos, móveis, equipamentos, ornamentos, símbolos, vestes etc., desde que relacionados às finalidades essenciais do culto.”

Enfim, todas as denominações religiosas necessitam de espaço físico, assim, os bens imóveis utilizados em suas práticas espirituais para consecução de seus fins são abrangidos pelo termo “templo” e, consequentemente, desonerados por meio da imunidade tributária.
No julgamento do Recurso Extraordinário nº 325.822/SP é verificada tendência semelhante ao exposto anteriormente:

Recurso extraordinário. [...] 2. Imunidade tributária de templos de qualquer culto. Vedação de instituição de impostos sobre o patrimônio, renda e serviços relacionados com as finalidades essenciais das entidades. Artigo 150, VI, b e § 4º, da Constituição. 3. Instituição religiosa. IPTU sobre imóveis de sua propriedade que se encontram alugados. 4. A imunidade prevista no art. 150, VI, b, CF, deve abranger não somente os prédios destinados ao culto, mas, também, o patrimônio, a renda e os serviços “relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas”. 5. O § 4º do dispositivo constitucional serve de vetor interpretativo das alíneas b e c do inciso VI do art. 150 da Constituição Federal. Equiparação entre as hipóteses das alíneas referidas. 6. Recurso extraordinário provido.

Em virtude do princípio da liberdade de crença, insculpido no inciso VI, do artigo 5º da Constituição, razão de ser da imunidade das organizações religiosas, são garantidas a todas as pessoas o direito de possuir e manifestar sua religiosidade. Religiosidade que deve ser respeitada e incentivada, uma vez que, apesar de laico nosso Estado, as atividades proporcionadas pelas religiões beneficiam toda a sociedade. Entidades religiosas que, juntamente com fundações e associações constituem o Terceiro Setor, promovem obras sociais de grande relevância para o Estado, auxiliando-o na promoção da dignidade humana, difundindo valores que completam e tornam as pessoas melhores. Sem falar nas obras sociais, caritativas, na promoção da saúde, da educação e da cultura. O bem que as entidades religiosas promovem não se restringe aos que praticam uma determinada religião, mas se propaga para além dos muros dos templos.

Imaginemos que toda essa colaboração fosse retirada. Imaginemos que as entidades religiosas com suas obras sociais, especialmente destinadas aos mais esquecidos de nossa sociedade, com seu auxílio material e espiritual, com suas pastorais, com suporte aos desempregados, às famílias, à saúde e à educação saíssem de cena. Imaginemos que, por dificultar de tal maneira seu funcionamento, as entidades religiosas e as demais organizações do Terceiro Setor tivessem de encerrar suas atividades e o Estado tivesse de suprir esse espaço. Certamente aumentariam os problemas sociais: a fome, a marginalização, a violência, a intolerância etc. As religiões, além de terem como ponto em comum a pregação do amor, da paz e da solidariedade, funcionam como instrumentos de controle social.

Clarear essas questões faz-se de suma importância, sob pena de se desrespeitar um preceito insculpido em nossa Constituição: a imunidade dos templos religiosos, como corolário do princípio da liberdade de crença prevista no art. 5º, inciso VI, da CR/88. É direito e garantia fundamental e, como tal, não pode ser suprimido, mas ampliado e que, certamente, não foi proposto pelo constituinte por acaso. De fato, o objetivo do legislador constitucional é o de proteger uma das mais arraigadas necessidades humanas: ligar-se a um ser transcendental, fazê-lo de forma livre, em grupos ou isoladamente, encontrar respostas para questões existenciais, receber orientação espiritual que atenue os momentos de dor e de dúvida, enfim, tornar melhor, mais abundante de significado e mais digna a vida.

Enfim, a discussão sobre a exclusão das entidades religiosas no Refis deve instigar essas mesmas entidades no sentido de se fazer uma cuidadosa análise de suas dívidas tributárias com o objetivo de verificar a existência do débito tributário. Uma vez que, conforme o exposto, tratando-se de impostos e contribuições sociais, há a possibilidade de o débito não existir, porque a Constituição da República de 1988 outorgou o instrumento da imunidade aos templos de qualquer culto.

Inclusive, há que se falar também na possibilidade de as entidades religiosas ingressarem com ações judiciais pleiteando ressarcimento de tributos pagos de forma indevida face a imunidade tributária que possuem. Enfim, toda essa análise é de extrema relevância e salutar no Estado Democrático de Direito. Afinal, as regras valem para todos e todos devem se sujeitar às regras. A União, os estados, o Distrito Federal e os municípios têm o dever de fazer cumprir a regra constitucional da imunidade e não se tornarem os primeiros a violar um comando que emana da própria Constituição da República.

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