O motivo do encontro foi a celebração do aniversário de 16 anos do grupo de ajuda mútua a adictos da empresa, ação importante do Programa de Prevenção e Tratamento em Dependência Química. No evento estavam presentes pessoas comprometidas com a recuperação e a possibilidade de transformação individual e coletiva, assim como recuperandos, empregados e ex-empregados, participantes do grupo e seus familiares. Profissionais que participaram da construção do Programa, outros que se empenharam em garantir sua continuidade e aqueles que, como eu, já não faziam mais parte do quadro de empregados da empresa, mas tinham um vínculo afetivo por ter participado da construção de história tão marcante e positiva.
Como convidada para palestrar, optei pela condução da “conversa”, compartilhando e agregando a fala dos atores e protagonistas do processo. Começamos com a frase de Adélia Prado: “O que a alma guardou fica eterno”. Muitas lembranças guardadas na mente e na alma de cada um. E a pergunta: “É possível transformar e ressignificar as histórias de vida no ambiente de trabalho? Claro que as pedras da trajetória são inevitáveis. Mas fica a pergunta no ar.
Ações corporativas x dependência química
Falando sobre a evolução dos Programas de Prevenção e Atendimento em Dependência Química nas organizações, apresentamos três quadros traçando uma linha do tempo/ações corporativas x situação das adicções e drogas. Não se trata de um estudo aprofundado, baseado em diversos autores, mas simplesmente na nossa prática profissional ao longo desses anos.
Nas décadas de 1970/1980, a droga marcante era o álcool, e o conceito de saúde era limitado ao bem-estar físico. O atendimento individualizado trazia a ideia do bode expiatório que o alcoolista tinha como destino. As equipes multidisciplinares, atuando no sintoma, e não na causa, traziam também o enfoque empresarial na punição/demissão, embora a codependência mascarasse muitos casos, especialmente quando se tratava de cargos da alta hierarquia.
Nas décadas de 1980/1990, o álcool continuou como ator importantíssimo, porém, aliado a drogas lícitas e ilícitas, devidamente identificadas. A Aids vem com toda sua carga de mortalidade e dúvidas, e põe em cheque as formas de lidar com muitos padrões de comportamento da sociedade. Inicialmente tida como a “peste gay”, logo se verificou que o uso compartilhado de drogas ilícitas era um dos responsáveis pelo contágio, e que a doença atingia todas as orientações sexuais. Mas o medo, aliado ao preconceito, trouxe muita infelicidade.
A dependência e a codependência continuavam juntas e misturadas. Novas respostas para novas demandas eram necessárias. O álcool se mantinha na dianteira, e o conceito de saúde pensando em bem-estar físico e mental existia, assim como a tentativa de envolver as chefias, famílias e equipes multidisciplinares para estabelecer caminhos. O sintoma continuava a ser tratado.
As empresas sinalizam seu papel social, avaliando o custo/benefício da demissão (qual é a garantia de não contratar um novo dependente químico?) e as parcerias com as comunidades e clínicas para tratamento da dependência química.
Nas décadas de 1990/2000, o crack surge com uso e abuso intensificado, tornando-se uma verdadeira pandemia. Cabe aqui a discussão: existe somente uma forma de atendimento e resultado? A abstinência é a única alternativa? Como vemos a redução de danos?
Vemos uma maior participação da rede social e familiar de apoio ao dependente químico, trabalhando com a visão sistêmica e dos ganhos secundários dos envolvidos: sejam familiares, chefias, o próprio dependente químico e o profissional responsável pelo atendimento. Muitas verdades absolutas sendo questionadas e, novamente, para novas demandas, tentativas de novas respostas.
As empresas, com a implementação de Programas de Qualidade de Vida e Responsabilidade Social, passam a utilizar como indicador de resultado os êxitos no atendimento à saúde, incluindo a dependência química.
Novas situações transformam as cidades e modos de convivência. Em São Paulo, a cracolândia e a população em situação de rua demandam respostas e ações que não conseguem absorver todas as necessidades. Torna-se mais forte a necessidade das organizações preservarem as pessoas, mantendo programas de prevenção e atendimento com regras claras, pois sabemos que o trabalho é um dos últimos lugares preservados pelos adictos.
Cabe aqui falar sobre a Saúde Mental, incluindo a dependência química neste âmbito, juntamente com os atuais males da modernidade, interligados e sujeitos a novos estudos na relação entre a prevalência de diagnósticos como depressão, transtornos e compulsões diversas.
Será inevitável o atendimento com uma visão holística, quebrando paradigmas, inclusive em relação aos limites de atendimento no mundo corporativo. Equipes transdisciplinares serão a resposta, num exercício de troca, mistura de bagagem de cada especialista.
A palavra-chave, em minha opinião, é resiliência: empresas garantidas como espaço preservado, porque a pessoa que está sendo acompanhada e tratada por Programas de Prevenção nas empresas, se recuperada, será um elemento forte para preservar os valores da organização. Uma empresa resiliente é composta por grupos resilientes. E grupos assim tendem a fazer comunidades mais resilientes.
A resiliência pode ser aplicada a vários fenômenos e ser objeto de estudo para programas de qualidade de vida. A dependência química, a codependência, transtornos diversos e relacionamentos abusivos podem e devem ser vistos de maneira integrada e sistêmica. A rede social de apoio, a participação ativa da chefia e o olhar ampliado de todos os participantes do processo de transformação podem e farão a diferença.
Nesta vivência que compartilhei, os momentos marcantes ficaram por conta da esposa de um recuperando, que já estava em recuperação de sua codependência cinco anos antes de o marido se recuperar, e isso já aconteceu há 17 anos; da chefia envolvida no processo de recuperação do seu funcionário e de como isso o tornou uma pessoa melhor; da profissional responsável pelo acompanhamento no Programa, que se sentiu “oxigenada” com a celebração do seu trabalho permanente e, finalmente, a fala marcante e profunda de um recuperando. Ele colocou toda sua humanidade, seus fracassos e falhas e sua capacidade de transformação. E a lembrança de todos os que escreveram esta história.
Droga: Álcool
Saúde: limitado ao bem-estar físico
Atendimento: Individualizado/ Teoria do Bode Expiatório / Equipes Multidisciplinares/ Cada um com sua “maleta de Especialista” / Sintoma
Empresas: enfoque na punição / demissão
Droga: Álcool + Lícitas e Ilícitas. (Aids)
Saúde: Ampliação: Bem-estar físico e mental.
Atendimento: Início do envolvimento de Chefias, Família e Saber Técnico Compartilhado / Teoria do Bode Expiatório questionada, Equipes Multidisciplinares / Definição de Limites / Cada um com sua “maleta de Especialista” / Sintoma
Empresas: Enfoque na avaliação custo/benefício da punição / demissão/ Parcerias para tratamentos clínicos
Droga: Álcool + Lícitas e Ilícitas – Crack – Uso e Abuso Intensificado – Pandemia; Abstinência ou Redução de Danos?
Saúde: Conceito OMS: “situação de perfeito bem-estar físico, mental e social” da pessoa. Conceitos Ampliados: Espiritualidade e família
Atendimento: Maior participação da rede social e familia de apoio ao dep. químico / visão sistêmica, Avaliação dos Ganhos Secundários dos Envolvidos, Equipes Multi-Interdisciplinares / Exercício de Troca de Bagagem / Especialista / Sintoma x Causa.
Empresas: Programas de Qualidade de Vida e Responsabilidade Social: Investimento no Talento Local x Desligamento.
Droga: Lícita/Ilícita/ Saúde Pública – Outras Compulsões: Garantias de Alívio Instântaneo / Banalização da vida e dos relacionamentos.
Saúde: Questionamentos OMS: Dependência ‘Química no âmbito da Saúde Mental – Combate aos Males da Modernidade Interligados: Depressão, TOC, Transtornos e compulsões diversas. Resiliência.
Atendimento: Visão Holística, quebra de paradigmas: saber acadêmico x sabedoria da vida. Modelos Alternativos.
Equipes Multi-interdisciplinares, Transdisciplinares Exercício de Troca / Mistura de Bagagem / Especialista / Sintoma x Causa, Saída da zona de conforto.
Empresas: Programas QVT, Responsabilidade Social: Espaço Preservado x Populações Vulneráveis: Empoderamento e emancipação. Grupos resilientes formam empresas resilientes.
Capacidade de superar as adversidades da vida e voltar ao estado anterior de equilíbrio depois de passar por dificuldades, transformando experiências negativas em aprendizado e oportunidade de crescimento.
Atitude
Pessoas resilientes assumem a responsabilidade pelo que acontece consigo, sem vitimização.
Projeto de Vida
Pessoas resilientes superam melhor o sofrimento porque encontram um sentido maior para a vida.
Autoconsciência
Pessoas resilientes compreendem os próprios sentimentos, conhecem suas forças e limitações.