“Eu não estou aqui”.
Foram essas as palavras escolhidas por Mário Quintana – poeta, tradutor e jornalista brasileiro – como seu epitáfio. Se lá onde foi depositado e permanece o seu corpo ele não está, por onde andará? Talvez impregnado nas pessoas, como neste autor, atingidas ao longo de décadas pelas suas palavras organizadas em ritmo de provocações sagazes e bem humoradas.
A escolha do epitáfio pode ser uma espécie de dica daquilo que o poeta e jornalista gaúcho pretendeu com a sua vida em vida, e também com o que ficaria de si após a sua morte, ou seja, a fluência, a mistura, a semeadura que escapa ao terreno fixo onde reside a matéria primária. O desejo de voar com o vento, cruzando pontes e estabelecendo parcerias na sensação de sentimentos e na criação de ideias. Desejo relacionado à vontade, quase arte, de construir e atravessar pontes em busca de bons e necessários encontros.
Ainda recorrendo à analogia da travessia da ponte, certa vez o inglês Isaac Newton (1642-1727), que viveu grande parte dos seus 85 anos se dedicando à Matemática, Filosofia Natural, Teologia e Alquimia, disse que os seres humanos constroem muros demais e pontes de menos. Vindas de um indivíduo que ficou na História como alguém muito inclinado aos estudos científicos, essas palavras podem causar estranheza naqueles que insistem em observar o humano como um armário cheio de gavetas, nas quais estão acomodadas, separadamente, nossas porções emocionais e racionais.
Deixando escapar mais um pouco de ironia, alguns desavisados até poderiam optar pela compreensão de que Newton estaria se referindo ao cenário da Engenharia Civil inglesa quando citou os muros e as pontes. Opta-se, aqui, pela potência provocativa do personagem inglês em se tratando da relevância do reconhecimento dos desafios – os muros – nas relações humanas, abraçadas diretamente à qualidade dos caminhos de aproximação – as pontes.
São muitas as partes que se unem para transformar um rascunho em obra, sonho desejoso em possibilidade de encurtar distâncias. Entre esses elementos e partes, a ética parece ter um papel essencial no recheio das pontes que aproximam sujeitos. Quando se assume a ética como recheio, e não como pintura ou verniz, há de se especializar o olhar para essa medida capaz de aproximar ou distanciar os envolvidos daquilo que os gregos arcaicos, por exemplo, buscavam nas relações consigo mesmos e com os outros: a nobreza, a beleza e a justiça.
Os mestres gregos, responsáveis pela educação das crianças a partir dos seis anos de idade, tinham claro para si que, antes de apresentar as técnicas – como a alfabetização e o cultivo de algum ofício –, era fundamental fortalecer os alicerces éticos daqueles seres em desenvolvimento. O desafio era acompanhar e apoiar a criança e o adolescente na travessia que partia do insthos (instinto), passava pelo esthos (afetos) para chegar ao ethos (ética). Essa jornada, também denominada por eles como Caminho do Herói – bastante explorada nas obras de Joseph Campbell, no século 20 –, tinha como objetivo “aproximar os homens dos deuses”, por meio, exatamente, da nobreza, beleza e justiça de suas atitudes.
A caminhada se dava, especialmente, por meio do teatro, dança, esportes e referências mitológicas. Sócrates, inclusive, defendia a urgência do ensino da ética a partir da mais tenra idade, buscando evitar a instalação da mentira e dos vícios. Tal urgência era justificada pelo filho de Fenareta pelo fato de que, para o conhecimento racional, o humano disporia da vida toda, enquanto que para a formação ética o tempo seria curto, sob pena de distorções irreversíveis de caráter. Assim, a opção de apresentar às crianças e aos adolescentes estímulos ao comportamento ético antes do ensino das técnicas era a aposta direta daquele povo.
O projeto de transmutação cotidiana dos instintos em virtudes, por meio da decisão de afetar e do desejo de ser afetado, nutritivamente, pelo seu entorno, é ouro que o alquimista humano talvez não deva perder de vista.
Que o Terceiro Setor seja, cada vez mais, espaço consistente de aprendizado e demonstração da possibilidade, ou ainda, da necessidade, de alterarmos a matriz de nossa sociedade, que hoje flerta muito mais com o individualismo do que com o altruísmo.
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