A Conta Do Supermercado

Por: Felipe Mello, Roberto Ravagnani
03 Fevereiro 2016 - 18h10

Eu tenho fome todos os dias. Uns dias mais, outros menos. Normalmente, faço de duas a três refeições diárias. Logo após despertar, na maioria das vezes antes do que eu gostaria, costumo ficar satisfeito com um café preto fresquinho. De tanto ouvir que o café da manhã é a principal refeição do dia, busco me patrulhar para proporcionar ao pretinho básico algum tipo de companhia. Pão com manteiga na chapa é a escolha mais óbvia e querida. Se der para colocar um requeijão por cima, tanto melhor. Coisa de padoca mesmo. Aliás, desconfio das cidades que não têm as padocas como redutos resistentes de encontros da vizinhança.

Pois bem. Além de ter fome, preciso me vestir também. Raramente compro roupas, uma vez que isso não me causa furor ou regozijo algum. Desleixo? Preguiça? Avareza? Não sei. Só sei que a regra é que eu as ganhe das pessoas mais próximas — imagino que por um misto de afeto e vergonha alheia. Ainda assim, em caráter excepcional, acabo comprando um modelito aqui e outro acolá. Alguém conhece algum brechó ou outlet legal, a propósito?

Eu também preciso sustentar meu filho automotivo. Minha caranga ano 2006 demanda gasolina, óleo e manutenção com alguma frequência. Lavagem só quando chove. Ou quase isso. Tenho medo de ser um cúmplice ainda mais atroz da agonia da Cantareira. Pena que eu moro em São Paulo e não dá para ir de bicicleta a todos os compromissos. Até dá, mas não sem efeitos colaterais relevantes em termos de tempo, sudorese avançada e incapacidade física. E olha que eu me considero um quase-atleta. Ainda assim, preciso me deslocar de carro particular em muitas situações.

Se eu continuar a descrever todas as minhas despesas aqui, possivelmente serei repreendido pela editora da revista, assim A CONTA DO SUPERMERCADO como algum leitor poderá decidir realizar uma campanha de crowdfunding buscando remediar o meu chororô econômico. Não é para tanto, mas agradeço de antemão aos que chegaram a pensar nisso.

Aluguel, impostos, educação, algum lazer. A isso tudo somam-se as despesas de se criar com o mínimo de dignidade um filho no Brasil. Há 16 anos tenho mais essa honra, que traz a reboque alegrias indizíveis e um par adicional de contas.

Dito isso tudo, quase chego ao meu argumento central. Completo o soneto compartilhando uma experiência que fiz em um supermercado recentemente. Depois de abastecer o carrinho, segui ao caixa. Depois de alguns instantes na fila, chegou a minha vez de passar pelo ritual medieval e de fazer inveja a sádicos torturadores: tira-se as compras do carrinho, passa-se pelo caixa, coloca-se tudo na sacola e de volta no carrinho, leva-se até o carro, tira-se do carrinho e coloca-se no porta-malas do carro, segue-se para a casa, coloca-se tudo no carrinho do condomínio, sobe-se pelo elevador apertado, tira-se tudo do carrinho do condomínio, leva-se o carrinho do condomínio de volta, volta- -se para a casa, separa-se as compras e as guarda. Isso tudo caso a vítima não tenha sido acometida por um infarto ou um ataque letal de tédio durante o processo.

Seguindo o relato de minha experiência, cheguei ao caixa e a moça me perguntou se eu tinha o cartão Blaster Ultra Plus da rede de supermercados. Afirmou-me com sinceridade quase convincente que eu teria acesso a descontos MA-RA-VI-LHO-SOS. Neguei a oferta pela milésima oitava vez. Após os valores individuais serem somados e um número obsceno aparecer na tela (atualmente só de pisar no supermercado você já gasta por baixo uns cem reais), eu disse algo à operadora do caixa:

Sou diretor de uma ONG.

É mesmo?, respondeu-me com simpatia pouco contagiante.

É verdade. Preciso pagar pela compra?, lancei-me de cabeça na raiz de meu experimento.

Não entendi, senhor.

É que eu sou diretor de uma ONG que faz o bem para as pessoas. Mesmo assim, eu preciso pagar pelos produtos?

Ela riu um riso constrangido. Li na expressão dela duas hipóteses: ou ela recebeu aquilo como uma piada sem graça ou, ainda pior, uma tentativa de golpe muito chinfrim. Sem alternativas, paguei a conta no cartão — para juntar milhas — e fui embora.

...

A questão da remuneração de dirigentes de ONGs é complexa, sim. Como qualquer uma que mexe em modelos mentais estabelecidos, parece difícil deixar para trás o lugar comum de que o ongueiro é aquele ser desprovido de interesses materiais, que transcendeu ao canto da sereia capitalista, ou seja, um semideus que nos honra com a sua presença terrena. Ainda que ele seja tudo isso, a maioria precisa pagar a conta do supermercado. Obviamente que a balança precisa ser justa: remuneração condizente com a competência oferecida, assim como fiscalização atenta dos órgãos responsáveis. Nenhuma novidade, nenhum mistério: apenas vontade de avançar e de dar suporte aos avanços com a máxima seriedade entre todos os envolvidos. Afinal, se o ongueiro não tiver com o que pagar a conta do supermercado, não conseguirá se comprometer a entregar aquilo que o Terceiro Setor precisa para garantir na prática o que já é seu de direito: o reconhecimento como um setor vital para o desenvolvimento do país.

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